sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

NATAL - SINGELOS PROPÓSITOS (Frei Betto)

A todos e todas ex-jacistas e seus familiares desejamos que as bençãos do Natal lhes conduzam no Ano Novo com muita paz, saúde e prosperidade! Como reflexão sugerimos o texto NATAL - SINGELOS PROPÓSITOS, escrito por Frei Betto.

Frei BettoFrade Dominicano, Teólogo, Antropólogo, Filósofo, Jornalista e Escritor - autor de 40 livros com obras editadas em vários países.
NATAL - SINGELOS PROPÓSITOS
Neste Natal, guardarei em caixas bem fechadas o que me transmuta naquele que não sou: a inveja, o ciúme, a sede de vingança, e todos os ressentimentos que me corroem as vísceras. Lacradas as caixas, atirarei todas nas profundezas do mar do olvido.
Neste Natal, esvaziarei o escaninho de minhas torpes intenções; as gavetas de tantas vãs ilusões; os armários de compulsivas ambições. De pés descalços, trilharei a senda saudável de uma existência modesta, por vezes solitária, sempre solidária.
Não darei ouvidos ao crocitar dos corvos em minhas janelas, nem ficarei indiferente às aquarelas pinceladas pela dor alheia, e manterei vedada a chaminé à entrada consumista de Papai Noel.
Tecerei, com as agulhas do acalanto e os fios invisíveis do mistério, o tapete promissor dos sonhos que me fomentam o entusiasmo. Recolherei as bandeiras da altivez militante e, numa caneca de barro, derramarei singelos propósitos: refrear a língua de maldizer outrem; reconhecer as próprias fraquezas; exercer a difícil arte de perdoar. Sorverei de um só gole até inebriar-me de compaixão.
Armarei, na varanda de casa, uma árvore de Natal cujo tronco será da mesma madeira que os princípios que me norteiam os passos; os galhos, as sedutoras vias às quais ousei dizer não; as flores, a paz colhida ao enclausurar-me no silêncio interior; os frutos, essa esperança-lagarta que insiste em metamorfosear-se em utopia sobrevoando o pessimismo que me assalta.
Aos pés de minha árvore deixarei vazios os sapatos de minhas erráticas peregrinações ao mundo inconsútil dos apegos que me sonegam o que a vida melhor oferece: a experiência amorosa de transcendê-la. Ao lado, minha lista de pedidos: a leveza imponderável da meditação; o dom de respeitar o limite das palavras; a felicidade de saciar-me na brevidade dos meus dias.
Neste Natal, montarei no canto da sala o presépio de minhas inquietudes. No lugar de franciscanos animais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos; como São José, um árabe fiel ao Alcorão; Maria, uma jovem judia semelhante à de Nazaré; Jesus, a criança africana carcomida pela fome.
Tragam os reis magos três oferendas: o ramo de oliveira preso ao bico da pomba que anunciou a Noé o fim do dilúvio; a brisa suave que soprou sobre Elias; o pão repartido na estalagem de Emaús.
Não celebrarei liturgias solenes em dissonância com o glória cantado pelos anjos do presépio; não me fartarei em ceias pantagruélicas enquanto o Menino se abriga ao relento num cocho; nem darei presentes que me doem no bolso e no coração, embalados em falsos sentimentos.
Sim, me farei presente lá onde a família de sem-teto, escorraçada de Belém, ocupa um pedaço de terra nas cercanias da cidade para que do ventre de Maria brote a certeza de que a justiça haverá de brilhar como a estrela de Davi.
Neste Natal, serei todo orações, dançarei ao som das cítaras do reino de Salomão, sairei pelas ruas cantarolando salmos, despirei todos os adereços de neve e, neste país tropical, deixarei que o sol pouse em minha alma.
Colherei as lágrimas dos desesperados para regar meu jardim de girassóis, e arrancarei os impropérios da boca dos irados para revogar a lei do talião. Nos becos da cidade, celebrarei com os bêbados, os mendigos, as prostitutas, a quem tratarei por um único nome: Emanuel. E, num grande circo místico, buscarei com eles a resposta à pergunta que jamais se cala: “o que será que será que cantam os poetas mais delirantes e que não tem governo nem nunca terá?”
Neste Natal, rogo a Deus ressuscitar a criança escondida em algum recanto de minha memória, a que um dia fui, menino que sabia confiar e, desprovido do pudor do ócio, livre das agruras do tempo, era capaz de imprimir fantasias coloridas ao lado obscuro da vida.
Quero um Natal de brindes à alegria de viver, hinos à gratidão da fé, odes à inefável magia da amizade. Natal cujo presépio seja o meu próprio coração, no qual o Menino Jesus desfaça laços e faça desabrochar todo o amor que se oculta nos sombrios porões do meu ego.

domingo, 16 de novembro de 2008

JUVENTUDE AGRÁRIA CATÓLICA: SEMPRE ANTIGA E SEMPRE NOVA - TESTEMUNHO E CONTRIBUIÇÃO

Em 04/11/2008 12:33, ">Raimundo Caramuru Barros escreveu:
Ignácia,

Estou remetendo pela terceira vez em anexo o texto para o encontro. Ele já me foi devolvido por duas vvezes. Espero que desta vez possa chegar às suas mãos. Fraternalmente. Caramuru.

J U V E N T U D E A G R Á R I A C A T Ó L I C A:
S EM P R E A N T I G A
E S E M P R E N O V A
T E S T E M U N H O E CONTRIBUIÇÃO
Brasília, 12/10/2008
Festa de Nossa Senhora Aparecida
Servus Mariae
(raimundo caramuru barros)
A P R E S E N T A Ç Ã O
Como não tenho condições de participar do V ENEJAC, estou remetendo esse texto como subsídio aos trabalhos, debates e decisões que ocorrerão nos dias em que estiverem em Itamaracá. Lamento não poder participar da confraternização que é uma dimensão de grande importância em um evento desta natureza. Considerem que estarei presente em espírito com vocês não apenas neste período, mas sempre que possível, em sintonia com o mistério da comunhão dos santos.
O texto que estou colocando em suas mãos consta de duas partes distintas. Na primeira parte procurei situar a JAC no período 1945 a 1964, tanto em termos de Brasil, da Igreja neste país e dos momentos mais importantes de sua evolução ao longo dessas duas décadas.
Com respeito ao papel do Assistente procurei tão somente traçar algumas linhas fundamentais, levando em conta as peculiaridades do meio rural brasileiro na época, e da situação da Igreja neste mesmo período. Expressando-me apenas em meu nome, mas achando que muitos outros assistentes confirmariam esta opinião, enfatizo que na JAC o assistente não apenas contribuiu para o desenvolvimento teologal dos(as) dirigentes e militantes, mas também deles(as) muito recebeu e com eles(as) muito aprendeu.
A segunda parte é apenas uma sugestão para reflexão. Nos últimos anos tenho acompanhado de perto a evolução das ciências da vida e estou convencido de que para o Brasil (especialmente para a Amazônia), dadas a sua dimensão territorial e a sua localização geográfica, a mudança do tipo (paradigma) de civilização é crucial. Ela permitiria banir os agrotóxicos, hormônios e os transgênicos de primeira geração; promover os transgênicos de segunda geração; e enfrentar com segurança os impactos negativos da acumulação excessiva na atmosfera do dióxido de carbono e do metano, que há bilhões de anos salvou a vida no Planeta do congelamento, mas que hoje a ameaçam com um superaquecimento.
As informações científicas que lhes passo, não tive tempo de as re-trabalhar. Aproveitei uma síntese que já havia elaborado para outra finalidade. Espero que a linguagem não atrapalhe o essencial que é explicitar um pouco mais em que consiste a “civilização da vida e a serviço dos seres vivos”. A sugestão de uma JAC para o século XXI, capaz de contribuir para a elaboração e implantação deste novo paradigma civilizatório constitui apenas um elemento de reflexão para o ENEJAC.
S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
A JUVENTUDE AGRÁRIA CATÓLICA “SEMPRE ANTIGA”
A Primavera Brasileira de 1945 a 1964
A Primavera de Renovação da Igreja no Brasil de 1945 a 1964
A JAC Nestas Duas Décadas e o Papel de Seus Assistentes Eclesiásticos
A JUVENTUDE AGRÁRIA CATÓLICA “SEMPRE NOVA”
3.1 Natureza das Revoluções Industriais nos Últimos dois Séculos e Meio.
3.2 Marcos que Antecederam e Basearam os Avanços das Ciências da Vida1
3.3 As três Características Essenciais da Rede de todo o Organismo Vivo.
3.4 Contexto em que se Originou a Vida no Planeta Terra na Idade Pré-Biótica
3.5 O Desenvolvimento da Vida no Planeta Terra na Idade do Microcosmo.
3.6 O Desenvolvimento da Vida no Planeta Terra na Idade do Macrocosmo.
3.7 O Sistema Gaia e a Centralidade Peculiar ao Fenômeno da Vida.
3.8 Mobilização de Toda a Sociedade Civil Sobretudo a Não Organizada.

3.9 Conclusão
INTRODUÇÃO
Há alguns dias recebi um telefonema de Angela Neves, a primeira dirigente nacional da Juventude Agrária Católica - JAC no Brasil - e mais tarde Presidente da JAC internacional, solicitando-me elaborar um testemunho sobre o papel do assistente eclesiástico junto a este movimento de Ação Católica. Esta solicitação suscitou em meu espírito uma marcante evocação sobre o que foi a JAC dos anos 50 e 60 do século XX, bem como sobre as perspectivas que se abrem para um movimento desta natureza e calibre nas primeiras décadas do século XXI.
Associei imediatamente esta evocação à expressão que nos foi legada pelo gênio vibrante e profundo de Agostinho, bispo de Hipona no Norte da África, nos primeiros anos do século V da era cristã. Em sua autobiografia espiritual ao relatar o itinerário que o levou, após longa e dolorosa luta interior, a acolher na fé o mistério de Cristo, o Filho de Deus que assumiu a natureza humana, padeceu, morreu e ressuscitou para realizar o Desígnio divino de salvação, Agostinho celebra este mistério exclamando: “Ó Beleza [encantadora], sempre antiga e sempre nova, tarde demais te amei”.
Extrapolando a densidade espiritual desta confissão de fé do bispo de Hipona, bem como seu excepcional conteúdo teológico, creio que se pode aplicar à Juventude Agrária Católica esta expressão “sempre antiga e sempre nova”, para caracterizar o que ela significou na segunda metade do século passado e ao mesmo tempo pré- anunciar o que ela pode representar para a juventude agrária da primeira metade do século XXI.
A JUVENTUDE AGRÁRIA CATÓLICA, “SEMPRE ANTIGA”
Para apreciar adequadamente o que a JAC representou desde os seus primórdios até o ano de 1964 é necessário situá-la nos contextos históricos em que ela brotou, cresceu e se desenvolveu neste período:
A primavera que marcou o desenvolvimento do Brasil de 1945 a 1964.
A primavera renovadora que caracterizou a Igreja no Brasil de 1945 a 1964.
A JAC nestas duas décadas e o papel de seus assistentes eclesiásticos.
2.1 A Primavera Brasileira de 1945 a 1964
O término da II Guerra Mundial abriu para o Planeta de um modo geral e para o Brasil de maneira mais específica uma nova era. Este momento preciso representou em termos planetários a liquidação das estruturas políticas, econômicas e sociais, que haviam predominado nas sociedades dos séculos XVII XVIII e XIX.
Em termos mais precisos o resultado da Guerra representou a desintegração dos impérios coloniais; a emergência de novos povos e de novas nações independentes; a tomada de consciência das limitações do mercado em promover o progresso econômico e o surgimento de novos modelos que conferiam ao Estado Nacional um papel indutor no processo de desenvolvimento de um país.
A partir de 1945 três blocos de nações passaram a dominar o cenário político internacional. O primeiro bloco foi formado pelas nações que adotaram o modelo de mercado na condução do seu sistema econômico-financeiro. O segundo bloco foi integrado pelas nações que optaram pelo modelo econômico socializante com um papel determinante do Estado nacional. O terceiro bloco agrupou as nações que não se alinharam politicamente com nenhum dos dois blocos anteriores, conservaram-se neutros e decidiram ao mesmo tempo desenvolver um sistema econômico híbrido, de acordo com as necessidades peculiares e as vantagens comparativas do respectivo país no mercado internacional.
Houve igualmente nesta época uma forte tomada de consciência da crise de alimentos, que condenava à fome crônica e à subnutrição quase dois terços da humanidade. Esta tomada de consciência refletiu-se na estrutura da Organização das Nações Unidas, que criou uma entidade específica para ocupar-se com a questão. Esta entidade foi denominada de “Organização para Alimentação e Agricultura” ou em inglês: “Food and Agriculture Organization” – FAO, que instalou sua sede na cidade de Roma – Itália.
No caso do Brasil começou-se a questionar de maneira mais contundente a estrutura fundiária arcaica e o nível tecnológico obsoleto da produção agropecuária. Acentuou-se o processo de migração das regiões menos desenvolvidas para as regiões mais afluentes. O processo migratório acentuou o êxodo rural por falta de acesso no campo a serviços essenciais de educação, de saúde e de saneamento básico, indispensáveis a uma melhor qualidade de vida. Essas levas de migrantes fizeram explodir as favelas das cidades de grande porte, cujas periferias passaram a inchar desmesurada e celeremente, elevando a níveis críticos o déficit habitacional, e demonstrando a incapacidade das administrações urbanas em fornecer a infra-estrutura econômica e social, buscadas por essas populações que deixaram a área rural, mas continuaram marginalizadas nessas excrescências urbanas.
No panorama político o Brasil depôs o Governo de Getúlio Vargas já há quinze anos no Poder e elegeu democraticamente como Presidente o General Eurico Gaspar Dutra. Para estabelecer um marco jurídico de natureza democrática foi elaborada e proclamada uma nova Constituição.
O Brasil entre 1942 e 1945 participara ativamente da II Guerra Mundial integrando-se às Forças Aliadas (Estados Unidos e Inglaterra), que combatiam as Forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, tornou-se um elo importante da cadeia logística, que permitiu às Forças Aliadas derrotarem as Forças do Eixo no Norte da África, bem como a invadirem e conquistarem a Itália. A base aérea de Natal com suas 18 pistas era passagem obrigatória das frotas de aviões que 24 horas por dia e sete dias na semana deixavam o Sul dos Estados Unidos rumo a Dakar, no Senegal, para dar suporte às tropas americanas e britânicas que combatiam no Norte do continente africano.
Mais tarde, já em território italiano tropas brasileiras participaram ativamente nos combates que resultaram na derrota da forças nazistas de Hitler e das forças fascistas de Mussolini no continente europeu.
Terminada a Guerra, os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para reconstruir a Europa Ocidental, ou mais precisamente a Alemanha Ocidental, Itália, França, Bélgica e Holanda, e impedir que esses países fossem anexados à área de influência direta da então União Soviética.
Tendo participado diretamente da Guerra, o Brasil propôs ao Governo americano que se estabelecesse um Plano análogo para a modernização da América Latina. Como resposta o Governo de Washington prontificou-se a modernizar a Agricultura brasileira, dentro do Ponto IV do Plano de ajuda que destinara aos países não europeus, bem como integrar uma Comissão Mista (Brasil – Estados Unidos) incumbida de traçar um plano estratégico para a modernização do Brasil.
Essas duas propostas foram honradas. A modernização da Agricultura brasileira concretizou-se em duas iniciativas. A primeira foi uma ampliação do Ministério da Agricultura com a criação do Serviço de Informação Agrícola, voltado para este objetivo. A segunda foi a criação da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural – ABCAR, com estrutura específica em cada Região. No caso do Nordeste criou-se a Associação Nordestina e Crédito e Assistência Rural – ANCAR.
Quando Getúlio Vargas voltou ao Poder, eleito democraticamente em 1950, foi formada a Comissão Mista Brasil – Estados Unidos – CMBEU. Seu resultado mais visível foi a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDE em 1953, objetivando o desenvolvimento da infra-estrutura econômica (transporte e energia) e posteriormente o desenvolvimento das indústrias de base, a partir de um convênio entre o BNDE e um órgão das Nações Unidas com sede em Santiago, Chile, denominado Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL. Nesta oportunidade foi criado também o Banco do Nordeste do Brasil – BNB.
Com o suicídio de Getúlio em agosto de 1954, houve um momento de hesitação política, mas finalmente o vice-presidente, o potiguar Café Filho, assumiu a Presidência e completou o mandato de Vargas. Os impasses políticos continuaram, mas devido à posição decisiva do General Teixeira Lott, então Ministro da Guerra, Juscelino Kubitschek eleito democraticamente como Presidente da República, tomou posse em março de 1956 e empenhou-se na execução de seu Programa de Metas, aproveitando os estudos realizados pelo BNDE e as propostas resultantes desses estudos. O programa estabelecia 30 metas nos campos de energia, transportes, alimentos, indústrias básicas, e educação de pessoal técnico. Mais tarde, a criação de Brasília, como sede da nova Capital da República, foi acrescentada às trinta metas originais. Todas essas metas foram atingidas dentro dos quantitativos e das especificações previstas.
No caso do Nordeste o ano de 1958 foi decisivo, quando o semi-árido nordestino foi atingido por mais uma seca devastadora. Empenhado em não se limitar apenas à adoção de medidas emergenciais para enfrentar esta eventualidade climática, o Governo Kubitschek buscou estabelecer medidas estruturais capazes de apresentar soluções definitivas no médio e longo prazo.
Com este objetivo, em abril de 1959 foi criado o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste – CODENO e em dezembro deste mesmo ano era criada a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE.
Em 1960 Jânio Quadros, após uma rápida e fulgurante carreira política em São Paulo, era eleito Presidente da República, tendo como vice o gaúcho João Goulart, numa aliança entre a União Democrática Nacional – UDN (partido que sempre foi oposição) e o Partido Trabalhista Brasileiro, criado por Getúlio Vargas no final da década de 1940.
Ao assumir a Presidência em março de 1961 e ao renunciar inopinada e surpreendentemente em agosto deste mesmo ano, Jânio criou um impasse político, só resolvido com a posse do Vice-Presidente João Goulart, que assumiu com o compromisso de apenas concluir o mandato de Jânio sem se arriscar a introduzir grandes inovações.
A dinâmica do desenvolvimento nacional, no entanto, estava a exigir inadiáveis reformas de base. Consciente deste imperativo João Goulart - considerado o herdeiro de Getúlio Vargas – foi levado a agir, e por isso despertou em seus adversários políticos desconfianças fatais, que culminaram com a intervenção militar, que o depôs aos 31 de março de 1964. Esta intervenção pretendia erradicar inteiramente do processo político brasileiro, o que considerava a herança de Vargas. Para atingir este objetivo não hesitou em interromper o processo democrático brasileiro pelo período de duas décadas.
Hoje se sabe com certeza que a deposição de Goulart foi tramada pelo Governo americano, que financiou uma série de medidas para desestabilizar o governo do Presidente brasileiro, bem como de vários outros Presidentes de países latino-americanos que não se afinavam com os interesses de Washington.
A Primavera de Renovação da Igreja no Brasil de 1945 a 1964
Esta primavera de renovação desabrochou tanto em nível da hierarquia da Igreja no Brasil como também em nível do laicato mais consciente. Terminada a II Guerra Mundial, Roma enviou como Núncio Apostólico para o Brasil Dom Carlos Chiarlo com duas prioridades, entre outras: Despertar a Igreja para os desafios do desenvolvimento, bem como sensibilizá-la para as questões da alimentação e do desenvolvimento da agropecuária.
Ao chegar ao Brasil o novo Núncio Apostólico escolheu o Padre Hélder Câmara como Conselheiro da Nunciatura para assuntos brasileiros. Nesta qualidade Padre Helder foi enviado pelo Núncio para participar de eventos importantes relativos ao desenvolvimento de certas regiões como Nordeste, Amazônia, Vale do Paraíba, e ao mesmo tempo articular os bispos dessas regiões a fim de despertá-los para os problemas do desenvolvimento, especialmente do desenvolvimento agrário. Esta iniciativa demonstrou que o episcopado brasileiro necessitava de uma coordenação e articulação mais sistemática e permanente e não apenas pontual e esporádica em função de acontecimentos específicos. Desta maneira esses desdobramentos prepararam a criação da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil em 1952.
Dentro desse contexto surgiu uma experiência concreta na Arquidiocese de Natal, Rio Grande do Norte. A construção da base área de Natal atraiu para a capital potiguar uma forte corrente migratória proveniente do interior do Estado, principalmente em 1942, quando o semi-árido nordestino foi vítima da catástrofe cíclica de uma estiagem prolongada, que deixou numerosas famílias desprovidas de alimentos e recursos essenciais à sua sobrevivência. Nesta conjuntura a cidade de Natal experimentou um crescimento desordenado, em que sua população quase decuplicou ao cabo de poucos anos.
Com o término da guerra e a desativação parcial da base área, bem como de todo o fluxo econômico gerado pelo esforço bélico, o desenvolvimento urbano de Natal enfrentou um desafio de grandes proporções: como atender essas populações periféricas da cidade e como encontrar novos empreendimentos econômicos capazes de substituir a economia de guerra que havia provocado a desordenada e insustentável aglomeração populacional na sua periferia?
Este desafio conjuntural chamou a atenção para outro desafio permanente enfrentado periodicamente pelas populações interioranas: a inviabilidade do nível tecnológico com que se praticava a atividade agropecuária no semi-árido, fruto em grande parte da estrutura social obsoleta, que impedia o desenvolvimento da região.
Esta tomada de consciência levou a arquidiocese de Natal em articulação com as duas dioceses sufragâneas de Mossoró e Caicó, a buscar respostas a este quebra-cabeça. Em 1949, sob a liderança do Padre Eugênio Sales da arquidiocese Natal, foi criado o Serviço de Assistência Rural – SAR, com o objetivo de elevar o nível da qualidade de vida das populações interioranas, proporcionando-lhes condições para que conduzissem o seu próprio desenvolvimento. Essa iniciativa prosperou, ampliou-se e assumiu grandes proporções, transformando-se no que se convencionou denominar de Movimento de Natal.
Este empreendimento pastoral operacionalizava em termos práticos as novas perspectivas de vivência e atuação da Igreja, preconizadas pelo Núncio Apostólico e veiculadas pelo Padre Hélder Câmara, em nível nacional através de eventos e fomento de iniciativas similares em várias regiões do país. Tanto em Natal como nas diversas experiências que desabrochavam em várias outras dioceses, era patente a necessidade de reciclar os sacerdotes que atuavam junto às populações rurais com respeito a esses novos horizontes da ação pastoral: fomentar comunidades eclesiais vivas, que ao mesmo tempo se colocassem a serviço do desenvolvimento humano das populações em que estavam inseridas.
Em 1950, Padre Helder Câmara organizou na Universidade Rural, localizada no interior do Estado do Rio de Janeiro, um encontro de longa duração para sacerdotes rurais provenientes de dioceses das várias regiões do país, com o objetivo de torná-los elementos multiplicadores dessas novas perspectivas da ação pastoral da Igreja no meio rural brasileiro. Este encontro foi orientado por Monsenhor Ligutti, que era então o representante do Vaticano na FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura.
A reciclagem de sacerdotes foi conduzida posteriormente de maneira sistemática na arquidiocese de Natal, que passou a promovê-la anualmente em cursos intensivos de dez dias no mês de janeiro de cada ano. A paróquia de São Paulo do Potengí, localizada no agreste nordestino, tornou-se sob os cuidados de seu pároco Mons. Expedito, um exemplo vivo desta nova orientação pastoral.
A primavera de renovação da Igreja não desabrochou, porém, apenas em nível da sua estrutura hierárquica, mas também em nível dos fiéis leigos. Como arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro com direito à sucessão Dom Sebastião Leme empenhou-se desde os meados da década de 1920 em promover a Ação Católica nos moldes preconizados por Pio XI, adotando o modelo italiano com os quatro ramos: homens, mulheres, rapazes e moças. Seus estatutos, porém, só foram reconhecidos e oficializados em 1935.
Com o falecimento do seu antecessor, o Cardeal Arcoverde, Dom Leme assumiu a arquidiocese do Rio de Janeiro e recebeu o chapéu cardinalício em julho de 1930, pouco antes da revolução que levou Getúlio ao Poder, exercendo nesta oportunidade o papel de mediador entre as forças revolucionárias e o Governo de Washington Luís, que estava sendo deposto, logrando assim evitar uma sangrenta guerra civil.
Este Cardeal deu continuidade ao trabalho apostólico que vinha realizando desde a década de 1920, tanto na implantação da Ação Católica como na conversão de grandes expoentes da elite intelectual brasileira residente no Rio de Janeiro. Com estes intelectuais fundou o Centro de Estudos Dom Vital, que posteriormente propiciou a criação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Ao longo das décadas de 1930 e de 1940, esses intelectuais através de seus escritos em forma de estudos (livros), artigos e crônicas publicadas em periódicos e diários da época exerceram uma influência positiva na opinião pública nacional com respeito à ação da Igreja e à fé cristã. Após o término da II Guerra, abordaram os temas em evidência no momento como democracia, desenvolvimento e nacionalismo.
Na passagem da década de 1930 para 1940, a Juventude Operária Católica - JOC, nos moldes formulados pelo sacerdote belga Joseph Cardijn, filho de um trabalhador em minas de carvão, começou a se implantar em cidades brasileiras. Sacerdotes canadenses atuando em Colégios da capital paulista introduziram também experiências iniciais com respeito à Juventude Estudantil Católica – JEC.
Essas iniciativas suscitaram na Igreja ao longo da década de 1940 a questão do modelo de Ação Católica, que mais se adequaria à Igreja no Brasil: o modelo italiano adotado na década de 1920 ou modelo da Ação Católica especializada por meio social, na base do método ver – julga - agir, inaugurado no Brasil pela JOC e pela JEC.
A “Revista do Assistente Eclesiástico” [da Ação Católica], dirigida e editada pelo Padre Helder Câmara, bem como outros periódicos católicos, alimentaram esse debate. A Semana Nacional de Ação Católica, que se realizou em Porto Alegre, imediatamente antes do Congresso Eucarístico Nacional, no ano de 1948, colocou este tema no centro de suas discussões.
A Ação Católica Brasileira - ACB estava então sob a supervisão direta de uma Comissão Episcopal específica, constituída inicialmente por cinco bispos. Em 1950 esta Comissão foi ampliada para nela incluir todos os cardeais e os arcebispos metropolitas da Igreja no Brasil. Na realidade esta Comissão Episcopal constituiu o embrião do que seria a CNBB, a ser criada em outubro de 1952.
No início de 1950 a Comissão Episcopal da ACB decidiu que a Ação Católica Brasileira passaria a se organizar de maneira especializada por meio social, tanto em nível dos movimentos de juventude, como em nível dos movimentos de adultos. A partir de então, além da JOC e da JEC foram constituídos os seguintes movimentos: a Juventude Agrária Católica – JAC; A Juventude Universitária Católica – JUC e a Juventude Independente Católica – JIC, que se limitou ao movimento feminino, para jovens pertencentes à classe média urbana, que tendo terminado os seus estudos, dedicavam-se ao exercício de uma atividade profissional e/ou preparavam-se para o casamento. Os correspondentes movimentos adultos foram surgindo aos poucos ao longo da década de 1950 e mesmo de 1960. Foram eles em grande parte promovidos por iniciativa de antigos dirigentes e militantes dos movimentos juvenis do respectivo meio social.
No período de 2 a 6 de julho de 1952, mesmo antes da criação da CNBB, realizou-se em Manaus o I Encontro dos Bispos e Prelados da Amazônia com dois objetivos:
Tomar conhecimento das iniciativas governamentais e das transformações a serem introduzidas na Região em decorrência dos recursos obrigatórios a serem nelas aplicados pela União, de acordo com as disposições transitórias da Constituição de 1946;
Traçar diretrizes pastorais a serem adotadas para fazer face a essas transformações.
Um encontro análogo e com objetivos semelhantes foi levado a cabo em Aracaju – Sergipe, reunindo todos os bispos do Vale do São Francisco no período de 25 a 28 de agosto do mesmo ano. A Constituição de 1946 previa também recursos substanciais a serem aplicados nesta Região em amplos programas de geração de energia elétrica e de irrigação. Esses programas visavam também elevar as condições de vida das populações ribeirinhas duramente atingidas pela malária. Era necessário que a Igreja definisse seu papel nessas transformações e adotasse as orientações pastorais dele decorrentes.
Em 1954 foi criada a Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB, a partir da realização do I Congresso de Religiosos do Brasil, com a participação de mais de 1.000 religiosos de todo o país, no período de 7 a 13 de fevereiro.
Em 1955 o país sediou, a partir da cidade do Rio de Janeiro, o Congresso Eucarístico Internacional que movimentou e mobilizou todas as dioceses e arquidioceses em torno do mistério eucarístico, centro da espiritualidade de todo o fiel católico. Logo em seguida a esta celebração de fé, foi realizada no Rio de Janeiro no período de 25 de julho a 4 de agosto a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, que decidiu pela criação do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM, confirmado e oficializado dois meses depois pelo Vaticano.
Em maio de 1956, os bispos do Nordeste conseguiram sensibilizar Juscelino Kubitschek, recém empossado na Presidência da República, e atrair sua atenção para os desafios enfrentados pelo semi-árido nordestino. Com efeito, o Presidente compareceu acompanhado por vários de seus Ministros e por um grupo seleto de técnicos a um encontro conjunto com os bispos do Nordeste, na cidade de Campina Grande – Paraíba.
Este encontro produziu um programa constituído por um conjunto de projetos em todos os setores relevantes para o aperfeiçoamento do nível de vida da população sertaneja do Nordeste. Este inventário de projetos inspirou-se de perto na experiência do Movimento de Natal cujo objetivo era melhorar as condições de vida das populações do interior, aperfeiçoar o nível tecnológico da agricultura nordestina e induzir no médio e longo prazo uma transformação das estruturas sociais da região.
Foi necessário, no entanto, que os bispos fossem persistentes em cobrar a execução dos projetos para que estes saíssem do papel. A fim de facilitar a comunicação com os bispos com respeito a este Programa, a Presidência da República colocou no seu Gabinete um funcionário com a missão de servir de ligação entre o Governo e os Bispos com o objetivo de garantir que o Programa fosse implantado e levado a cabo.
O aprofundamento de uma tomada de consciência regional, por parte do episcopado, verificou-se igualmente na Região Norte, onde se realizou em 1958 o II Encontro dos Bispos e Prelados da Amazônia. O objetivo deste encontro foi chegar a um maior entrosamento e cooperação com o governo no tocante às atividades sociais desenvolvidas pelas dioceses, prelazias e congregações religiosas, a fim de atender às necessidades mais gritantes das populações residentes na área. Nesta oportunidade foi criado o Escritório Técnico de Prelados da Amazônia para dar apoio á ação da Igreja na Região no tocante a seu trabalho de promoção social e relacionamento com os órgãos governamentais.
Em 1958 o Movimento de Natal através de sua emissora de Rádio começou a levar ao ar uma programação educativa para as populações do interior juntamente com um programa de alfabetização similar ao modelo bem sucedido de alfabetização empreendido por Mons. Salcedo, na Colômbia. Outras dioceses do Nordeste, bem como do Norte e do Centro Oeste manifestaram interesse em associar-se a esta iniciativa, levando à criação do Movimento de Educação de Base - MEB em nível nacional, mediante um convênio entre a Presidência da República e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. O MEB aperfeiçoou o sistema pedagógico das escolas radiofônicas, adotando a pedagogia desenvolvida pelo educador pernambucano Paulo Freire, que correspondia em grande parte ao método do ver – julgar – agir, adotado pelos Movimentos de Ação Católica.
Em 1958 durante a estiagem prolongada que mais uma vez deixou cerca de 2 milhões de famílias do interior nordestino sem os meios essenciais de sobrevivência, o Governo Juscelino resolveu adotar não apenas medidas emergenciais de socorro às vítimas da seca, mas também dar início a um programa mais amplo e estrategicamente fundamentado, que no médio e longo prazo criasse as condições capazes de neutralizar os efeitos negativos deste indesejado fenômeno climático de recorrência cíclica.
Por causa do Plano de Metas elaborado pelo BNDE e adotado por Juscelino como Programa de Governo, o Presidente da Republica recorreu a este Banco de Desenvolvimento para elaborar uma proposta. O Corpo Técnico do Banco, liderado pelo economista paraibano Celso Furtado, que já havia trabalhado na CEPAL, adaptou para o caso do Nordeste o modelo de desenvolvimento que já estavam aplicando nas Regiões Sudeste e Sul do país.
Em sua espinha dorsal era um Plano de Desenvolvimento Industrial a ser administrado pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE. De certo modo esta proposta ia de encontro ao Programa adotado em Campina Grande em 1956, voltado para uma modernização da agricultura nordestina, visando criar mecanismos capazes de neutralizar o fenômeno cíclico das secas.
Para resolver este impasse entre as duas orientações foi realizado um encontro em Natal, no mês de maio de 1959 na busca de conciliar as duas posições, aparentemente antagônicas. Na realidade não houve conciliação, mas apenas um ajustamento de posições. Meio século depois é mais fácil avaliar os dois modelos. Com efeito, o programa de industrialização do Nordeste não foi capaz de absorver o excedente de mão-de-obra do meio rural e contribuiu significativamente para engrossar o êxito rural - urbano, ampliando em maior escala a favelização das capitais dos Estados nordestinos, e de outros centros urbanos de maior porte, localizados no interior da Região.
Hoje começa a ser retomada a posição defendida pelos bispos na década de 1950: dar prioridade à agricultura em novas bases tecnológicas, com capacidade para absorver melhor a força de trabalho; aperfeiçoar a gestão das águas; valorizar o ser humano e suas raízes culturais; desenvolver sua solidariedade e assim modernizar progressivamente as estruturas sociais obsoletas.
Na segunda metade da década de 1950 surgiu igualmente o fenômeno das Ligas Camponesas em Pernambuco, lideradas pelo advogado Francisco Julião. Nessas circunstâncias a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil resolveu dar apoio ao sindicalismo rural, para que os trabalhadores rurais pudessem atuar e defender seus direitos dentro da legalidade.
Em poucos anos foram criados numerosos sindicatos rurais em diferentes Estados de diversas Regiões. Em seguida formaram-se as Federações estaduais e finalmente a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Em nível nacional o apoio da Igreja ao sindicalismo rural, principalmente à formação de líderes para o sindicalismo rural foi assumido pelo Movimento de Educação de Base – MEB. Em alguns Estados foram criados com o apoio da Igreja instituições para-sindicais, tais como a Frente Agrária Gaúcha - FAG no Rio Grande do Sul, e a Frente Agrária Goiana – FAGO no Centro Oeste com o objetivo de promover a sindicalização rural e formar lideranças a serviço dos sindicatos rurais.
Em 1961 realizou-se o Encontro dos Bispos do Vale do Rio Doce. Seu objetivo foi articular os bispos desta Bacia a fim de elaborar e adotar diretrizes e medidas pastorais em face das atividades de mineração e siderurgia, que segundo as expectativas deveriam modificar substancialmente o panorama sócio-econômico da Região.
No início da década de 1960 merecem menção as tensões que se manifestaram entre os movimentos da Ação Católica especializada. A JUC, através de um progresso coerente de reflexão sobre o seu meio, concluiu pela necessidade de uma reforma universitária, que colocasse a Universidade a serviço de toda a sociedade. A JEC, por sua vez, batia-se por uma reforma do ensino secundário numa perspectiva mais democratizante.
A JUC passou a assumir uma participação cada vez mais ativa nos trabalhos da União Nacional de Estudantes – UNE. Esta, por seu lado, orientava-se cada vez mais para uma ação junto à sociedade, atuando como uma força política autônoma, dado que a questão educacional correlacionava-se diretamente com os problemas do desenvolvimento brasileiro, amplamente debatido na época nos quadros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros e mais discretamente na Escola Superior de Guerra – ESG.
Durante o Conselho realizado pela JUC, em julho de 1960, com ampla participação dos militantes de suas bases, para comemorar seus 10 anos de existência, essas questões foram amplamente discutidas e levadas à apreciação de todos, marcando para os próximos anos a linha do movimento. A partir de 1961, a JUC assumiu o nacionalismo defendido pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros e apoiou a participação de universitários cristãos nos movimentos de cultura popular e na aliança operário – estudantil, buscando uma forma de socialismo compatível e mesmo mais condizente com os princípios evangélicos.
Este posicionamento provocou sérias tensões entre a JUC e a hierarquia da Igreja a partir de 1962, reacendendo o debate sobre a participação dos cristãos, especialmente dos movimentos de Ação Católica e de Igreja na política. Essas tensões repercutiam também no seio dos demais movimentos da Ação Católica Especializada.
A JOC e JOCF foram os movimentos que mais reagiram a essa reflexão e orientação propostas e seguidas pelos movimentos estudantis (JUC E JEC), devido à posição clara e precisa seguida pela JOC internacional a esse respeito.
A JAC e JACF, embora filiadas ao Movimento Internacional da Juventude Agrária e Rural Católica, tinham liberdade de tomar o posicionamento que julgassem mais conveniente para sua atuação no país, pois o Movimento Internacional a que estavam filiadas dava aos movimentos nacionais uma grande margem de liberdade de orientação. Por sua vez, a JAC e JACF no Brasil proporcionavam igualmente bastante flexibilidade aos movimentos diocesanos e aos secretariados regionais para que se adaptassem da maneira melhor possível à realidade local e nela se inserissem.
Quatro motivos principais podem ser apontados para as diferenças entre o posicionamento da JAC e JACF e os movimentos estudantis. Em primeiro lugar a tomada de consciência das reformas estruturais necessárias ao desenvolvimento da agricultura no Brasil e à modernização da sociedade rural brasileira como um todo foi aprofundada na medida em que esse dois movimentos começaram a trabalhar com jovens assalariados rurais (sobretudo em Pernambuco e São Paulo). Estes jovens sentiam de maneira mais profunda e vivencial o problema da terra e as distorções nas relações de trabalho, vigentes nas grandes plantações.
Em segundo lugar, os movimentos estudantis expressavam-se em uma linguagem abstrata, utilizando conceitos teóricos muito em voga nos meios intelectuais e no jargão estudantil. Os movimentos rurais e operários estavam habituados a uma linguagem concreta e eram menos afeitos aos discursos de natureza teórico-analítica.
Em terceiro lugar, os movimentos estudantis expressavam as ansiedades, preocupações e aspirações de seu meio, muito mais facilmente mobilizável e permeável a um processo de conscientização. Os movimentos de cunho rural e operário estavam inseridos em meios muito mais complexos, em que a liderança decisiva estava com os adultos. A conscientização desses meios populares era muito mais lenta e exigia grande dose de realismo. A proposta do meio estudantil de fazer algo para o agricultor e para o operário foi criticada como paternalismo.
Em quarto lugar, os movimentos estudantis dispunham na União Nacional de Estudantes um instrumental político de força considerável. Sobre ela podiam exercer uma influência significativa e através dela podiam marcar sua posição na sociedade. A Juventude Agrária Católica e a Juventude Operária Católica atuavam em meios com relações de trabalho, estruturas sindicais e políticas muito mais rígidas e menos acessíveis à influência transformadora dos jovens. Mesmo concordando com certas posições teóricas propostas pelos movimentos estudantis, a JAC e a JOC davam-se conta das dificuldades práticas de operacionalizá-las.
Os movimentos adultos, integrados em boa parte por ex-dirigentes e ex-militantes dos movimentos de jovens, acompanhavam os debates, empreendiam uma reflexão sobre seus engajamentos, mas deixavam a cada um de seus militantes a decisão sobre a maneira concreta de efetivar esse engajamento.
Na primeira metade da década de 1960, o episcopado brasileiro, na sua grande maioria integrada por bispos relativamente jovens, foi forte e decisivamente marcado pelo Concílio Vaticano II. Para os mais de duzentos bispos brasileiros da época, a participação neste Concílio representou uma excepcional reciclagem teológica e uma grande oportunidade de se abrirem ao testemunho e à vivência pastoral da Igreja Católica presente em todos os países do Planeta.
Em 11 de abril (Semana Santa) de 1963, o Papa João XXIII lançara a sua última e mais importante encíclica “Pacem in Terris”. Celebrando e comentando esta encíclica, a Comissão Central da CNBB, publicou um pronunciamento vibrante e incisivo. Tomando como base o texto deste documento Pontifício, os bispos fundamentam e defendem as inadiáveis reformas de base de que o Brasil precisava: questão rural; reforma da empresa; reforma tributária; reforma administrativa; reforma eleitoral; reforma educacional.
A encíclica de João XXIII e o pronunciamento da Comissão Central davam apoio aos posicionamentos e ao engajamento defendido pela Ação Católica Brasileira, pelo Movimento de Natal, pelos movimentos sociais apoiados pela Igreja, por cristãos que militavam no Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB, e vinham ao encontro de posições defendidas por diversos grupos nacionalistas. O pronunciamento irritou, porém, grupos conservadores e forneceu elementos para a reação que culminou com a intervenção militar, que depôs o Governo de João Goulart em 31 de março de 1964.
O Concílio Vaticano II, que se reuniu no período de 1962 a 1965, levou a Igreja no Brasil a três posicionamentos axiais e complementares. O primeiro foi levar todo o povo de Deus e membros da Igreja Católica a aprofundarem sua vivência no mistério da Igreja com base nas constituições conciliares “Lumen Gentium” (Mistério da Igreja); “Dei Verbum” (Palavra de Deus e Desígnio Divino de Salvação); “Sacrosanctum Concilium” (Celebração Litúrgica).
O segundo posicionamento dizia respeito às relações de diálogo entre a Igreja Católica com outras Igrejas e denominações cristãs (ecumenismo); com outras religiões não cristãs (diálogo inter - religioso); bem como à aplicação ao caso brasileiro da declaração conciliar “Dignitatis Humanae” sobre liberdade religiosa.
O terceiro posicionamento, com base na constituição “Gaudium et Spes”, explicitava o papel da Igreja na sua atuação a serviço do desenvolvimento integral do ser humano e de todos os homens. Este posicionamento foi posteriormente mais detalhado na encíclica Populorum Progressio promulgada por Paulo VI em 26 de maio de 1967.
Quando o Concílio encerrou-se aos 8 de dezembro de 1965, a CNBB havia aprovado em assembléia geral um plano completo para sua implantação junto ao povo de Deus em território brasileiro. Este plano foi executado na integra, abordando o primeiro, o terceiro e o segundo posicionamentos nesta ordem de prioridade. O primeiro posicionamento tinha como objetivo fazer com que todas as comunidades eclesiais - desde as comunidades eclesiais de base, às paróquias, às dioceses, aos movimentos de atuação nacional, à CNBB e ao conjunto do povo de Deus – fossem renovadas como comunidades vivas de Igreja com a participação efetiva de todo o povo de Deus. O segundo posicionamento foi explicado ao povo de Deus, mas operacionalizado de maneira mais cautelosa para evitar interpretações equivocadas.
O terceiro posicionamento levou a Igreja a modificar progressiva, mas significativamente a sua maneira de prestar o serviço à sociedade. De um lado, ela continuou e aperfeiçoou seu serviço de assistência social, para atender e minorar as situações que não podiam esperar por reformas estruturais. A criação e organização da Cáritas Brasileira contribuíram para este aperfeiçoamento da ação social promovida pela Igreja.
O serviço orientado para uma ação transformadora dentro da sociedade foi, porém, assumindo paulatinamente um rumo diferente do adotado nas décadas de 1940 e 1950. Nestas duas décadas, e mesmo na primeira metade dos anos de 1960, havia uma cooperação estreita entre a Igreja e o Governo de plantão, para prestar este serviço à sociedade com as limitações impostas por esse tipo de cooperação, que alcançou o seu ápice durante o Governo de Juscelino Kubitschek.
Três fatores principais contribuíram para uma ruptura com o modelo de cooperação entre a hierarquia católica e os governos militares: o caráter autoritário desses governos; o fenômeno das torturas, que se intensificaram ao extremo no Governo do Presidente Médici; a política sócio-econômica adotada por esses regimes militares, sobretudo a partir do Governo do Presidente Costa e Silva, que conduziu o país a uma maior concentração de renda e ao alargamento do fosso entre as desigualdades sociais.
Em coerência com o Concílio Vaticano II e com as encíclicas papais, os pronunciamentos e posicionamentos da hierarquia católica passaram pouco a pouco a identificar-se com o povo, a defender os pontos de vista dos injustiçados e das classes menos favorecidas, bem como a contestar as políticas governamentais. Nesta transição de modelos das relações entre a hierarquia católica e o Estado Nacional, os movimentos especializados da Ação Católica foram quase todos eliminados, tais como a JAC; muitos de seus militantes foram perseguidos e mesmo torturados. Para eles a primavera da segunda metade dos anos de 1940 e da década de 1950 transformou-se em um tenebroso e fatal inverno na segunda metade dos anos de 1960, e este inverno prolongou-se pelas décadas de 1970 e 1980.
A JAC Nestas Duas Décadas e o Papel de Seus Assistentes Eclesiásticos
Lançando um olhar retrospectivo a partir deste início do século XXI sobre o Brasil rural dessas duas décadas (1945 a 1964) é preciso reconhecer que, apesar de toda a efervescência que dominou o cenário brasileiro neste período bem como da primavera renovadora que marcou a vida da Igreja no Brasil, sobretudo no meio urbano nesta mesma época, a tarefa confiada a Ângela Neves de implantar a Juventude Agrária Católica em território brasileiro assume o caráter de uma missão com envergadura de tal dimensão, que só encontra sentido à luz da fé. Ao acompanhar certa vez Santina, a dirigente da JACF em Pernambuco, em uma entrevista que manteve com Celso Furtado, pude perceber a descrença do idealizador da SUDENE de que este movimento tivesse condições de dar uma contribuição significativa à transformação da agricultura pernambucana.
A diversidade do meio rural brasileiro, dos pampas gaúchos à bacia amazônica, passando pelo Centro – Oeste que começava a ser desbravado; a estrutura agrária arcaica e obsoleta, herdada dos tempos do Brasil Colônia; as manchas de pequenas e médias propriedades rurais, predominantes nas áreas de colonização alemã e italiana do Centro - Sul e menos expressivas em algumas sub-regiões do Nordeste; os desafios do semi-árido; o avanço tecnológico da agricultura, restrito em grande parte às grandes plantações voltadas para o comércio exterior; as quatro mil sedes de municípios, localizadas em pequenas cidades do interior com profundas raízes rurais ainda marcadas pelo Brasil do século XIX, mas atraídas pelo fascínio das grandes cidades, e funcionando como uma porta aberta a incentivar o êxodo rural - urbano; constituem alguns traços marcantes do Brasil rural por ocasião do término da II Guerra Mundial em 1945.
De outro lado, em termos religiosos predominava no interior brasileiro o cristianismo da chamada religiosidade popular, muitas vezes influenciada pelo misticismo de personalidades e ordens religiosas carismáticas e contagiantes, que continuavam a alimentar esse tipo de vivência cristã a partir de centros de romarias que - criados ao longo dos anos - continuavam a atrair numerosos peregrinos.
A JAC tinha a missão de educar os jovens que viviam neste meio para uma fé cristã mais adulta, capaz de enfrentar e sobreviver a um novo mundo que vinha surgindo e que deveria transformar a agricultura e a cultura rural brasileira pelas suas inovações tecnológicas no decorrer das próximas décadas.
Não por mera coincidência, a JAC - nos seus primórdios - floresceu com mais pujança no Nordeste brasileiro. Na época era a Região onde a Igreja contava com um número mais significativo de bispos e presbíteros abertos aos movimentos de renovação eclesial que de certo modo prepararam o Concílio Vaticano II: renovação litúrgica; aprofundamento da Palavra de Deus em termos missionários, catequéticos e de celebração da Palavra; serviço da Igreja ao desenvolvimento humano da sociedade na perspectiva de sua modernização tecnológica e cultural, a despeito dos grandes desafios enfrentados pela sociedade civil nordestina, tais como estiagens prolongadas com ocorrência cíclica e a estrutura fundiária obsoleta e concentradora de propriedade de terra.
A partir da segunda metade da década de 1950, com a figura carismática de Dom Edmundo Kunz, bispo auxiliar da arquidiocese de Porto Alegre, a JAC brotou no Rio Grande do Sul e em poucos anos logrou um desenvolvimento extraordinário, tanto do movimento feminino como masculino. Seus dirigentes muito rapidamente começaram a dar uma significativa contribuição em nível nacional.
O ano de 1960 constituiu um ano decisivo para o desenvolvimento da JAC no Brasil, de modo análogo ao que acontecera com os movimentos estudantis neste mesmo ano, especialmente com a JUC, que ganhou um impulso considerável a partir do Encontro em que reuniu quase todos os seus dirigentes e militantes no Rio de Janeiro, para celebrar o seu décimo aniversário. Para a JAC o acontecimento marcante foi sua participação no Congresso Internacional da Juventude Agrária e Rural Católica, que reuniu em Lourdes, na França, 25.000 jovens dos movimentos europeus, do Canadá, da América Latina, de países africanos e de alguns países asiáticos.
O tema central do Congresso foi o desafio da alimentação em um novo mundo que surgiu dos escombros da II Guerra Mundial e descobriu que mais da metade da população do Planeta passava fome, levando as Nações Unidas a criar um organismo específico para enfrentar o problema: a FAO. Um representante deste organismo compareceu ao Congresso da Juventude Agrária Rural Católica. Mas o Congresso ampliou o tema e o debateu dentro de quatro dimensões: fome de alimento; fome de cultura; fome de amor (solidariedade); fome de Deus. Durante o Congresso os movimentos europeus apresentaram uma encenação que abordava o problema da fome com base no Livro de Jorge Amado “Seara Vermelha”, que focalizava a migração de nordestinos vitimados pela seca, rumo ao Sudeste do país. Sua publicação é de 1946, quando o autor era ainda filiado ao Partido comunista.
Com a ajuda financeira proporcionada pelos movimentos europeus, a JAC brasileira conseguiu levar uma delegação de cerca de 30 dirigentes. Dom Edmundo Kunz acompanhou a delegação. Como o trajeto Rio – Lisboa foi via marítima, os dias de travessia do Atlântico foram aproveitados para realizar uma série de encontros, preparando a participação da delegação no Congresso e os estágios que se seguiriam junto aos movimentos europeus. A abertura de horizontes que esta experiência do Congresso de Lourdes proporcionou aos brasileiros que dela participaram foi de fundamental importância para a evolução da JAC nos anos subseqüentes, em que o movimento tomou consciência de sua dimensão internacional, especialmente latino-americana, e se expandiu para o Centro – Oeste e para o Estado de São Paulo.
Para estruturar o movimento em função de suas novas dimensões e expansão e conferir maior profundidade e segurança à sua atuação foi necessário aumentar o quadro de permanentes, tanto em nível nacional como em nível regional, e em alguns casos mesmo em nível diocesano. O fato da JAC - tanto em nível nacional como em nível regional - ter uma sede comum com outros movimentos especializados de Ação Católica muito contribuiu para que os permanentes pudessem trocar experiências e se ajudar mutuamente nas horas difíceis, especialmente a partir de março de 1964.
A implantação da JAC no Estado de São Paulo e no Centro – Oeste exigiu um aprofundamento da situação da estrutura fundiária e das relações trabalhista dos jovens assalariados empregados nas grandes plantações. O enfrentamento deste desafio já vinha sendo colocado anteriormente com relação às plantações canavieiras da Zona da Mata do Nordeste. Com a atuação do movimento nas plantações de São Paulo e do Centro Oeste, foi necessário encarar essa questão em termos mais específicos e diferenciados da atuação anterior do movimento em pequenas cidades do interior e junto a jovens agricultores em pequenas propriedades rurais.
A situação e o papel dos assistentes eclesiásticos de JAC exigiram que fossem levadas em consideração as especificidades da Igreja no meio rural. Com efeito, no meio rural o assistente é quase sempre o pároco ou o seu coadjutor. Em ambos os casos ele tem sob sua responsabilidade toda a comunidade de Igreja que ele preside como o elo visível de sua unidade e como elo de comunhão com toda a comunidade diocesana. Na paróquia a JAC é apenas um dos movimentos, embora um movimento especial que prepara os jovens para a vivência e exercício de uma fé mais adulta capaz de superar a simples religiosidade popular e enfrentar o processo de modernização e transformação tecnológica e cultural pelo qual iria passar a população da área. Embora o assistente deva garantir a esses jovens a atenção necessária para neles formar esta fé mais adulta, é necessário que ele os insira como fermento no conjunto da comunidade paroquial. Este papel torna-se mais difícil, quando o pároco por necessidade ou por tendência dedica grande parte de seu tempo e atenção à execução de obras seja na construção e melhoria da igreja, seja na implantação de obras sociais.
Nas circunstâncias em que o assistente eclesiástico tinha dedicação exclusiva para o movimento, como acontecia em nível nacional e em nível de alguns regionais, o papel do assistente assemelhava-se muito ao papel que ele costumava exercer o assistente junto a outros movimentos especializados de Ação Católica: ser o educador de uma fé mais adulta entre os dirigentes do movimento e ter o descortino necessário para ajudá-los a aperfeiçoar e qualificar sua formação humana em habilidades necessárias ao seu melhor desempenho junto ao movimento. Ao mesmo tempo fazia-se necessário que ele fosse capaz de articular os párocos rurais, incentivá-los a trabalhar em equipe com outros párocos, a fim de atender melhor ao movimento de jovens em sua paróquia e encontrar as melhores alternativas para que JAC contribuísse para a renovação de toda a comunidade paroquial. Desta maneira a JAC tinha um papel de grande importância para a renovação da Igreja no meio rural, preparando uma juventude capaz de enfrentar os embates da modernização e contribuir para a renovação da pastoral paroquial em coerência com as grandes linhas traçadas pelo Vaticano II.
A JUVENTUDE AGRÁRIA CATÓLICA “SEMPRE NOVA”
Quando apliquei à Juventude Agrária Católica a expressão de Agostinho de Hipona “sempre antiga e sempre nova”, veio-me à mente uma questão de suma relevância neste início do século XXI. Dei-me conta de que os jovens do meio rural sempre trabalharam com os seres vivos e com a natureza viva: plantas, animais, fungos e com os bilhões de microorganismos que povoam cada metro cúbico de terra fértil. Esses microorganismos trabalham as rochas e digerem os minerais nela contidos transformando-os em elementos químicos que as plantas podem absorver.
Esta questão assumiu proporções ainda maiores quando descobri que o ENEJAC (Encontro Nacional de Ex – Jacistas) se propunha estudar em seu V Encontro a ser realizado em início de novembro deste ano os desafios do aquecimento global. Ora, a maneira mais eficiente de enfrentar o aquecimento global e seus impactos negativos é promover a “civilização da vida e a serviço da vida”. Esta corrige e equilibra os ciclos dos elementos químicos, especialmente do dióxido de carbono cuja acumulação na atmosfera do Planeta está provocando o efeito estufa. Ajudar a construir uma civilização da vida e a serviço da vida pode ser um lema para a JAC do início do século XXI. Mas, para entender mais cabalmente o alcance desta proposta faz-se necessário explicitar os seguintes desdobramentos:
Natureza das revoluções industriais nos últimos dois séculos e meio;
Marcos que antecederam e basearam os avanços das ciências da vida;
As três características essenciais da rede de todo o organismo vivo;
Contexto em que se originou a vida no planeta terra na idade pré-biótica;
O desenvolvimento da vida no planeta terra na idade do microcosmo;
O desenvolvimento da vida no planeta terra na idade do macrocosmo;
O sistema Gaia e a centralidade peculiar ao fenômeno da vida na Terra;
Mobilização de toda a sociedade civil, sobretudo a não organizada.
3.1 Natureza das Revoluções Industriais nos Últimos dois Séculos e Meio.
Essas revoluções criaram a “civilização da matéria inorgânica” ou “a civilização da máquina”. Com efeito, o enfoque axial dessas revoluções foi a transformação da matéria inorgânica para conferir maior eficiência às atividades humanas e promover uma melhor qualidade de vida aos seres humanos e às suas respectivas sociedades na medida em que indivíduos e sociedades fossem capazes de apropriar-se dos benefícios dessas transformações. Além de lidar primordialmente com a transformação da matéria inorgânica essas revoluções industriais utilizaram como fonte importante de energia os combustíveis fósseis tais como carvão mineral, petróleo e gás natural, ou a queima e destruição de matéria vegetal.
Suas opções fundamentaram-se na concepção cartesiana que serviu de base à mecânica Newtoniana e às suas equações do movimento, tendo como instrumento matemático as equações diferenciais. Nesta concepção o universo era considerado como uma máquina em que tudo acontecia na base de causa e efeito inteiramente definido e absolutamente previsível.
A matéria inorgânica, porém, estava sujeita às três leis da termodinâmica: a primeira garante a conservação integral do binômio “massa – energia”; a segunda assevera que cada processo real e espontâneo de transformação acarreta o aumento da entropia, ou a fração da energia que não pode mais ser utilizada para produzir trabalho; em outras palavras o sistema aproxima-se de um equilíbrio em que a interação entre os elementos químicos é extremamente reduzida; a terceira estabelece que a entropia é zero no caso de uma substância perfeitamente cristalina conservada a uma temperatura de zero absoluto (- 273,16º - negativos – medidos no sistema centígrado ).
O aumento progressivo da entropia conduzia fatalmente a humanidade para um futuro pouco alvissareiro de estagnação, pois à medida que o Planeta se aproximasse do equilíbrio não haveria mais energia com capacidade de ser transformada em trabalho. Este desfecho inexorável levava a revolução industrial com base na transformação da matéria inorgânica a um impasse no processo de desenvolvimento da humanidade. Este impasse foi o tema da Cúpula Mundial, realizada em Estocolmo (Suécia) em 1972 e retomado vinte anos mais tarde na Cúpula Mundial levada a cabo no Rio Janeiro em 1992.
Em outras palavras, como minimizar os efeitos negativos decorrentes do processo de desenvolvimento em termos de aumento da entropia e proporcionar a todos os povos do Planeta o padrão de bem-estar desfrutado pelas nações mais desenvolvidas? Como garantir a produção de alimentos e insumos agrícolas, abrindo mão dos padrões tecnológicos de uso da mecanização em larga escala na agropecuária e da utilização crescente de agrotóxicos, de adubos químicos, e de hormônios para a engorda de animais?
O reconhecimento deste impasse desencadeou uma corrida em busca de novas tecnologias, com as características exigidas pelo novo conceito de desenvolvimento sustentável com as seguintes características:
Economicamente eficiente;
Socialmente justo e solidário;
Ecologicamente responsável com relação às gerações presentes e futuras;
Politicamente participado nos níveis local, sub-regional, regional e nacional;
Operacionalmente integrado e descentralizado, no tocante à sua dimensão multissetorial e à sua dimensão espacial.
Todos foram unânimes em concordar com a tese de que a prioridade dada à transformação da matéria inorgânica conduzia fatalmente a humanidade à entropia e à estagnação. Com base nesta concordância surgiram duas tendências como respeito ao desenvolvimento sustentável.
A primeira tendência, adotada pela grande maioria, aceita e promove o paradigma das revoluções industriais ou seja a civilização que confere prioridade à matéria inorgânica e à máquina, embora procure reduzir ao mínimo os estragos e impactos negativos que este paradigma acarreta para o meio ambiente.
A segunda tendência almeja no médio e longo prazo criar um novo paradigma de civilização, que priorize a vida e os seres vivos. Será uma “civilização da vida e a serviço dos seres vivos”. Por sua vez, a implantação desta civilização requer que se mobilize e articule em função deste objetivo toda a sociedade civil, principalmente os seus 90% ainda não organizados.
3.2 Marcos que Antecederam e Basearam os Avanços das Ciências da Vida2
A filosofia helênica e a escolástica medieval já haviam estabelecido a distinção entre substância e forma. A substância responde à questão de que elementos determinado ser é constituído ou qual é a sua estrutura. A substância ou a estrutura de um ser podem ser medidas e pesadas. A ciência identificou a célula como o elemento comum a todos os seres vivos desde o início do século XX..
A biologia molecular descobriu que a célula é constituída de macromoléculas, tais como enzimas, proteínas, aminoácidos, etc., e que as características de todos os seres vivos estão codificadas em seus cromossomas.
Os avanços da biologia molecular lograram decifrar este código e conhecer a estrutura exata de alguns genes, ao identificar no núcleo da célula o DNA (o acrônimo em língua inglesa da expressão bioquímica DeoxyriboNucleic Acid), detentor de toda a informação genética. O DNA produz as moléculas RNA (RiboNucleic Acid) através das quais ele transmite as instruções para os centros de produção da célula.
A biologia molecular, porém, não pôde avançar mais, quando se deu conta de que 95% do DNA é utilizado não para os centros de produção, mas para atividades de integração dos diversos componentes da célula. A biologia molecular estava limitada à “substância” ou à estrutura da célula, que pode ser medida e pesada, mas a forma e a configuração da célula ficavam fora de seu alcance.
A forma ou a configuração das relações em um ser vivo emergiu como uma abordagem complementar e essencial para a cabal compreensão do que seja o ser vivo. Enquanto a estrutura envolve quantidades que podem ser medidas, a configuração de relações é de natureza qualitativa, podendo ser mapeadas. Com efeito, o ser vivo deve ser concebido como um sistema e as propriedades de um sistema decorrem de sua configuração de relações adequadamente ordenadas. Um ser vivo morre, quando sua configuração de relações é destruída, mesmo que sua estrutura bioquímica permaneça ainda intacta por algum tempo. A configuração das relações em um ser vivo assume a forma de rede. Esta configuração é peculiar a todos os seres vivos desde as bactérias até os seres vivos multicelulares mais complexos. Em todos eles a configuração dos seus componentes está disposta em forma de rede.
A ciência começou a reconhecer este fato ao pesquisar na década de 1920 as cadeias alimentares. Nos seres vivos dotados de cérebro esta configuração fica ainda mais evidente.
Com efeito, o cérebro humano com sua estrutura extremamente complexa contém dez bilhões de neurônios (células nervosas), que estão interligados em uma vasta rede com cerca de um trilhão de interconexões denominadas de sinapses. Por sua vez o cérebro humano é dividido em sub-redes que se intercomunicam também na configuração de rede, em que cada sub-rede se aninha uma dentro da outra em diversos níveis, numa configuração extremamente complexa.
Devido a esta sua complexidade a configuração de rede não pode ser modelada através de equações lineares de simples causa e efeito muito comum no caso da matéria inorgânica. Essa configuração de rede precisa ser tratada através de equações não lineares capazes de reproduzir matematicamente um número quase ilimitado de alternativas. Por esse motivo sua análise matemática só pôde ser levada adiante a partir da década de 1960 devido a dois fatores cruciais: um de natureza matemática e o outro de natureza computacional.
O fator de natureza matemática surgiu na virada do século XIX para o século XX. O matemático francês Jules Henri Poincaré (1854 a 1912) criou nesta época um novo ramo da matemática, denominado de “topologia”. A topologia superava as limitações da geometria tridimensional de Euclides e era capaz de analisar matematicamente as relações e a configuração de rede. O matemático francês utilizou esse novo instrumental para analisar com algum sucesso as características qualitativas de problemas dinâmicos complexos.
Na época, porém, deu-se pouca importância a esta inovação de excepcional alcance, porque o mundo científico estava deslumbrado com a teoria dos quanta iniciada por Max K. E. L. Planck (1858 a 1947) e com a teoria da relatividade de Albert Einstein (1879 a 1955): tanto a teoria da relatividade especial que não leva em conta a força gravitacional, publicada em 1905, como a teoria da relatividade geral que inclui a força da gravidade, publicada em 1916.
A inovação matemática de Poincaré só foi retomada na década de 1960, quando a invenção de computadores eletrônicos de grande e pequeno porte disponibilizou um instrumento capaz de lograr em termos práticos a solução das equações não lineares formuladas pela topologia.
Esses dois fatores permitiram que em pouco tempo fosse desenvolvida a matemática dos sistemas complexos com sua gama de novos instrumentos. Este avanço da matemática foi de capital relevância para o espetacular progresso alcançado pelas ciências da vida nas últimas quatro décadas. Esses avanços permitiram conjugar complementarmente as duas dimensões: de um lado, a substância ou estrutura e, de outro lado, a forma ou a configuração de rede.
3.3 As três Características Essenciais da Rede de todo o Organismo Vivo.
A primeira característica de todo o ser vivo - que o distingue radicalmente da simples matéria inorgânica – é ser auto-producente e auto-organizativo. Em outras palavras, o ser vivo não é apenas dotado de diversos componentes em configuração de rede, mas é ele mesmo que os produz permanentemente. Da mesma forma, o ser vivo comanda sua própria organização.
Com efeito, tomando como exemplo a célula de uma planta, constata-se que os seus componentes fazem parte de uma vasta rede em que são operados milhares de processos metabólicos através de variados circuitos. Para alimentar esses processos a célula absorve - através da membrana que a envolve - os nutrientes de que necessita e elimina os seus dejetos.
Deste ponto de vista, ela é um sistema energética e materialmente aberto aos fluxos que a perpassam. De outro lado, a membrana que permite esta interação com o ambiente externo, faz da célula um sistema autônomo em si mesmo. Por isso, ela não é comandada pelo ambiente circundante, mas seu comportamento e sua organização são assumidos pela própria célula, conferindo-lhe a peculiaridade de auto-organizativa. Esta característica a torna ao mesmo tempo um sistema fechado do ponto de vista organizacional.
A segunda característica essencial e peculiar ao ser vivo consiste no estado distante do equilíbrio térmico em que ele opera devido ao fluxo permanente de energia e matéria, que o perpassa. A questão fundamental consistiu em descobrir e explicitar as condições necessárias e suficientes para fazer com que sistemas que operam distantes do equilíbrio fossem capazes de conservar sua estabilidade. Esta questão levou Ilya Prigogine (nascido russo), Professor de química e física da Universidade Livre de Bruxelas e prêmio Nobel nesta categoria a formular e demonstrar sua teoria das “estruturas dissipáveis”. Prigogine observou que todos os sistemas de seres dividem-se em duas categorias: os sistemas que tendem a trabalhar no equilíbrio térmico ou muito próximo dele e os sistemas que operam distantes do equilíbrio. A estabilidade de um e outro é assegurada por mecanismos distintos.
A primeira categoria de sistemas foi o objeto da física de Newton e de suas equações diferenciais do movimento, bem como das três leis da termodinâmica clássica. Quaisquer que sejam as condições iniciais do sistema, este é atraído para um estado estacionário com o mínimo possível de fluxos, operando tão próximo do equilíbrio quanto possível, de tal modo que a geração de entropia é reduzida ao mínimo dos mínimos. A terceira lei da termodinâmica coloca esta característica em evidência quando estabelece que a entropia é zero no caso de uma substância perfeitamente cristalina conservada a uma temperatura de zero absoluto (- 273,16º - negativos – medidos no sistema centígrado ).
Nos sistemas que operam no equilíbrio térmico ou muito próximo dele os fluxos são muito fracos e assim podem ser descritos por equações lineares. Ademais, seu comportamento pode ser perfeitamente previsível e predito, e seus processos são em princípio reversíveis, de modo que o futuro é ciclicamente igual ao passado, não deixando lugar para a criatividade e, em uma palavra, para a história.
Alguns efeitos irreversíveis, tais como a fricção, a viscosidade (ou a resistência de um fluido ao fluxo), bem como as perdas de calor foram considerados pouco relevantes pela física Newtoniana.
A este respeito os cientistas levantaram uma questão crucial: Qual é a causa desta irreversibilidade? Constatou-se então que essa dissipação da energia só é irreversível em nível macroscópico. Em nível microscópico da movimentação molecular os fenômenos são reversíveis, embora as leis do movimento de Newton possam ser aplicadas às cascatas de colisões entre as moléculas. Com efeito, essas colisões são eventos reversíveis, pois é perfeitamente possível inverter o processo em sentido contrário. Esta constatação levou à formulação do seguinte paradoxo: a dissipação da energia (fricção, viscosidade, perda de calor) que constitui um fenômeno irreversível de acordo com a segunda lei da termodinâmica e a experiência de cada dia é ao mesmo tempo composta de eventos perfeitamente reversíveis no nível microscópico das moléculas.
Este paradoxo foi resolvido na virada do século XIX para o século XX pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann. Este cientista introduziu neste contexto o conceito de ordem e desordem em coerência com as leis da termodinâmica, que divergem neste particular do mesmo conceito decorrente da física de Newton. Embora não exista nenhuma lei da física que impeça um movimento das moléculas no sentido da desordem para a ordem, este movimento é extremamente improvável em conseqüência dos deslocamentos aleatórios das moléculas.
Quanto maior for o número de moléculas mais improvável se torna um movimento nesta direção. Em um gás, por exemplo, devido ao número extraordinário de moléculas, o movimento no sentido da ordem para a desordem é altamente provável, e para efeitos práticos pode ser considerado como uma certeza.
Por isso, Boltzmann concluiu que em coerência com a segunda lei da termodinâmica todo sistema fechado tende para o estado de maior probabilidade que é o estado de máxima desordem. Aliás, na física clássica a dissipação da energia é sempre associada à produção de dejetos. Em termos matemáticos esse estado de máxima desordem e entropia é o estado de equilíbrio ou de quase equilíbrio térmico.

De outro lado, os sistemas dinâmicos abertos que operam distantes do equilíbrio tendem para um estado de ordem superior, pois nesses casos as moléculas não operam em movimentos aleatórios, mas encontram-se interconectadas através de múltiplos circuitos de retro-alimentação que as guinda a uma ordem mais elevada.
Em função desses circuitos de retro-alimentação esta movimentação das moléculas só pode ser descrita por equações não lineares. Essas equações não são mais dominadas pela tendência ao equilíbrio ou quase equilíbrio, dado que o sistema se orienta para uma ordem de grau mais elevado e as estruturas dissipáveis mantêm-se sempre distantes do equilíbrio. Nos sistemas fechados, objeto da física de Newton, o conceito de ordem está associado ao equilíbrio como acontece com os cristais e o conceito de desordem esta vinculado às turbulências e a situações de não equilíbrio.
Nos sistemas dinâmicos abertos que operam longe do equilíbrio, acontece exatamente o inverso: a fonte mesma da ordem é o estado de não equilíbrio. À medida que o fluxo de energia e matéria aumenta nesta segunda categoria de sistemas e os circuitos de retro alimentação adquirem maior vigor, o sistema é levado a momentos de instabilidades, denominados de pontos críticos ou pontos de bifurcação. Esses momentos de instabilidade ou pontos de bifurcação representam uma espécie de limiar de uma nova estrutura mais complexa dotada de um nível superior de ordem.
Este salto qualitativo nos pontos de bifurcação não contradiz a segunda lei da termodinâmica, pois a entropia total do sistema continua a aumentar, mas este aumento não implica em uma correspondente elevação da desordem. Na realidade, as estruturas dissipáveis nesta segunda categoria de sistemas são ilhas de ordem, que mantém e aperfeiçoam esta ordem à custa do ambiente circundante.
No caso dos seres vivos, estes absorvem do meio ambiente seus nutrientes, usa-os como recursos para seus processos metabólicos a fim de aperfeiçoar seu grau de ordem e devolvem ao meio ambiente os dejetos, que são estruturas de ordem inferior.
Com base na contribuição valiosa de Boltzmann a ciência demonstrou que muitos fenômenos naturais - como os redemoinhos produzidos no ar (tornados e furacões), ou como os rodopios, sorvedouros e vórtices observados na água - são sistemas que operam longe do equilíbrio e revelam um elevado grau de ordem. Numerosas experiências, sobretudo de natureza química, foram levadas a cabo demonstrando que no reino puramente inorgânico são numerosos os sistemas que operam distante do equilíbrio e representam um nível mais elevado de ordem do que os fenômenos analisados e descritos pela física clássica e pelas três leis da termodinâmica.
Entre essas experiências podem ser citadas as células de Bénard em forma de favos de mel (início do século XX); os relógios químicos (década de 1960); o LASER (acrônimo da expressão em língua inglesa Light Amplification through Stimulated Emission of Radiation) também na década de 1960; os ciclos catalíticos e hiper-ciclos de Manfred Eigen (década de 1970), que são não apenas estáveis, mas capazes de se auto-copiar, bem como de corrigir os erros de sua autocópia.
Manfred Eigen especula que esta capacidade de se auto-copiar pode ter ocorrido em sistemas químicos, como um estágio pré-biótico, antes do surgimento dos primeiros organismos vivos. Esta segunda categoria de sistemas atinge o seu ápice nos seres vivos, quando as estruturas dissipáveis estão inteiramente voltadas para um aperfeiçoamento progressivo da ordem em estágios progressivos através das instabilidades periódicas e dos pontos de bifurcação.
Esta segunda característica dos seres vivos corresponde à intuição e à tendência das teorias científicas, que desde meados os do século XIX conferem relevância aos conceitos de evolução, crescimento e desenvolvimento.
A terceira característica dos seres vivos consiste no processo de aprendizado, que o cientista chileno Humberto Maturana, denominou de processo de cognição. Segundo este cientista esse processo é comum a todos os seres vivos, sejam ou não dotados de cérebro.
Com efeito, ele se identifica com o próprio processo da vida, que é auto-producente, auto-organizativo e também auto referenciado, pois, embora sofra influência do ambiente circundante, sua referência fundamental é a própria rede do ser vivo. Para o cientista chileno, os componentes da rede, que constituem a configuração de cada ser vivo, passam por mudanças estruturais de dois tipos:
mudanças cíclicas de auto-renovação;
mudanças de caráter desenvolvimentista.
As mudanças cíclicas de auto-renovação podem ocorrer de maneira muito rápida. No organismo humano o pâncreas renova a maior parte de suas células a cada 24 horas; as células que formam o revestimento do estômago se refazem a cada três dias; as células brancas do sangue renovam-se a cada dez dias; 98% das proteínas existentes no cérebro são substituídas em menos de um mês; a pele humana renova suas células na velocidade de 100.000 por minuto.
As mudanças de caráter desenvolvimentista, ou sejam, as novas conexões na rede auto-producente e auto-organizativa, são decorrentes de dois fatores: a dinâmica interna do sistema e as interações com o meio ambiente. O meio ambiente apenas dispara as mudanças estruturais, mas não as especifica nem as dirige. Assim, a membrana da célula incorpora continuamente substâncias do meio ambiente ao seu processo metabólico e o sistema nervoso do organismo modifica sua conectividade a cada percepção dos sentidos. Por isso esse sistema de acoplamento constitui um processo permanente de adaptação, de aprendizagem e de desenvolvimento.
Maturana distinguiu neste processo de aprendizagem duas dimensões. Na primeira dimensão o organismo vivo mantém seu caráter auto-producente e auto-organizativo e assim esse processo se identifica com o próprio processo da vida, reage aos estímulos do meio ambiente através de mudanças estruturais de acordo com sua rede não linear, auto-producente e fechada do ponto de vista organizacional.
Na segunda dimensão o ser vivo cria o seu próprio domínio de percepção em consonância com os dois pólos de sua relação: o universo externo do ambiente que o circunda e o universo interno de sua própria rede. Os dois pólos desta relação fazem com que a percepção do universo peculiar de determinado organismo vivo – suponha-se uma alga - seja diferente em conteúdo e amplitude da percepção vivenciada por indivíduos de outra espécie de organismo, tais como um fungo, uma samambaia ou o um animal.
3.4 Contexto em que se Originou a Vida no Planeta Terra na Idade Pré-Biótica
Levando em conta que a grande explosão (big ban) - que marcou o início do presente estado do Universo – tenha ocorrido há cerca de 13,2 bilhões de anos, o Sistema solar com seu Planeta Terra surgiu há aproximadamente 4,5 bilhões de anos como uma nuvem de poeira composta de gás interestelar em altíssimas temperaturas, denominada de plasma. Hoje a Terra é um Planeta, o terceiro em distância e o quinto em tamanho, de uma estrela de quinta grandeza - o Sol - localizada na fímbria de uma galáxia em espiral, conhecida como Via Láctea, que é integrada por bilhões de outras estrelas e nebulosas, e ao mesmo tempo é parte integrante de um Cosmos formado de miríades de outras galáxias ainda em expansão.
Podemos, assim, considerar a Terra como uma espaçonave orbitando em torno do sol, mas inserida em um Universo cujas dimensões extrapolam a capacidade imaginativa do ser humano. Mesmo depois que as rochas liquefeitas do Planeta primitivo foram parcialmente solidificadas, formando sua crosta atual, a superfície do globo terrestre continuava completamente estéril, constituída por rochas em estado sólido, por mares de pouca profundidade, todos envoltos em uma fina camada de gases, com predominância de metano, amônia, sulfeto de hidrogênio e vapor de água.
Nesta condição o globo terrestre era simplesmente a geosfera, abrangendo as seguintes camadas: litosfera, hidrosfera e atmosfera.
A litosfera é constituída pela crosta continental, pela crosta oceânica e pela parte externa do manto, que é uma área de transição entre a litosfera e o núcleo central do Planeta. Formada de rochas ígneas, sedimentares e metamórficas, ela cobre toda a superfície da Terra, desde as montanhas mais elevadas até as mais abissais profundezas dos oceanos. Na crosta continental predominam as rochas graníticas ricas em alumínio e silício. Na crosta oceânica prevalecem as rochas basálticas.
A hidrosfera compreende todas as águas do Planeta: rios, lagos, lagoas, oceanos, águas marinhas e salobras, águas subterrâneas, lençóis de gelo e vapor de água cobrindo 71% da superfície da Terra. O ciclo hidrológico consiste nos volumes de água, contidos nos continentes, nos oceanos e na atmosfera e a troca de água entre essas três esferas.
Há evidências de que na sua história a Terra tenha conhecido quatro idades glaciais em que as águas dos oceanos congelaram quase até a linha do equador com grandes conseqüências para os seres vivos aquáticos.
A atmosfera é uma fina camada de gases, vinculada à superfície da terra pela força da gravidade. A composição da atmosfera e sua estrutura vertical criaram condições favoráveis ao surgimento da vida no Planeta.
A altitude de 100 quilômetros é considerada como o limite entre a atmosfera e o espaço exterior, embora os efeitos da atmosfera possam ser percebidos até 120 km. Existem na atmosfera quatro camadas separadas entre si por áreas fronteiriças de descontinuidade: a troposfera, a estratosfera, a mesosfera e a termosfera.
A troposfera, que atinge uma espessura de até 17 km nos trópicos, é reduz a 7 km nos pólos. Esta camada é a única em que os seres vivos podem respirar normalmente; está sujeita aos fenômenos climáticos; e representa 80% do peso atmosférico.
A tropopausa é a camada intermediária entre a troposfera e a estratosfera, cuja espessura varia segundo as condições climáticas da troposfera.
A estratosfera se estende da tropopausa até uma altitude de 50 km. Sua temperatura aumenta com a altitude. Apresenta pequena concentração de vapor de água e se caracteriza por movimentos de ar no sentido horizontal com grande estabilidade propícia aos vôos de aviões a jato. Nela está situada a camada de ozônio e nela tem início a difusão da luz solar que dá origem à coloração azul do firmamento.
A estratopausa é uma área de descontinuidade entre a estratosfera e a mesosfera. Logo abaixo dela situa-se a maior parte da camada de ozônio que se concentra na parte superior da estratosfera, sendo responsável pela proteção dos seres vivos contra a ação dos raios ultravioletas.
A mesosfera ocupa a camada entre 50 e 85 km da superfície da Terra. Nela a temperatura diminui com a altitude podendo chegar a 90º negativos. Nela também tem início a região que contém íons e nela acontece a combustão dos meteoróides.
A mesopausa é uma camada que separa a mesosfera da termosfera. Nela termina uma atmosfera com massa molecular constante e começa uma atmosfera com predominância da difusão molecular.
A termosfera ocupa uma espessura entre 85 e 640 km da superfície da terra. Sua temperatura aumenta com altitude. Nela as moléculas se movem em trajetórias aleatórias e sua densidade é tão reduzida, a ponto de raramente se chocarem. Esta camada abriga também grande parte da região de íons (um átomo - ou grupo de átomos – caracterizado pela sua deficiência ou excesso de elétrons, que os torna eletricamente carregados).
Esta camada tem início na parte superior da mesosfera. A região de íons ocupa faixas superpostas: a primeira delas situa-se entre 50 e 80 km da superfície da Terra e é responsável pela absorção da maior quantidade de energia eletromagnética; a segunda faixa estende-se de 80 a 140 km e desempenha funções semelhantes à faixa anterior, com a peculiaridade de ser tanto mais ativa, quanto mais perpendiculares forem os raios solares, que sobre ela incidem.
A terceira faixa situada entre 100/140 km e 200 km só é ativa nos períodos diurnos; e a quarta e mais alta faixa ionosférica localiza-se entre 200 e 400 km de altitude e é o principal meio de reflexão ionosférico.
Em conexão com essas diferentes camadas da atmosfera é conveniente destacar dois outros fenômenos significativos. O primeiro deles é a denominada magnetosfera, isto é, uma região em que o plasma (gases em temperaturas muito elevadas) magnetizado e originário das estrelas interage com a atmosfera magnetizada da Terra.
Nesta região o comando dos processos eletrodinâmicos é exercido pelo campo magnético intrínseco do Planeta Terra e o fluxo do plasma estelar magnetizado é desviado.
O segundo fenômeno é constituído pelos dois cinturões de radiação, conhecidos como cinturões de Van Allen: o cinturão externo e o cinturão interno, acompanhando a linha do equador a uma distância da superfície terrestre equivalente ao comprimento de dois ou seis raios da esfera terrestre. O primeiro é produzido por partículas do plasma (gases em temperaturas muito elevadas) solar, que se aproximam da Terra ao longo da linha do equador. O segundo é gerado pela incidência de partículas da mais alta energia dos raios cósmicos.
Ao longo de sua história a Terra conheceu três diferentes atmosferas. A primeira era constituída principalmente de hélio e de hidrogênio. O calor proveniente da crosta terrestre com gases em altas temperaturas e a irradiação solar a dissiparam.
A segunda atmosfera era 100 vezes mais densa do que a atual com elevadas quantidades de dióxido de carbono, cuja presença desenvolveu o efeito estufa e impediu a Terra de congelar durante os quatro períodos glaciais enfrentados pelo Planeta. Ela decorreu do resfriamento do Planeta e da conseqüente solidificação da crosta terrestre iniciada há aproximadamente 3,5 bilhões de anos. A atividade dos vulcões, então muito numerosos, liberou grandes volumes de vapor de água, dióxido de carbono e amoníaco para formar esta segunda atmosfera, em que estavam presentes também o metano e o óxido de enxofre.
A terceira atmosfera foi preparada pelo resfriamento do Planeta, que levou à condensação do vapor de água e induziu a precipitação de chuvas, resultando na formação dos oceanos. Estes absorveram 50% do dióxido de carbono.
A idade pré-biótica durou cerca de 1 bilhão de anos – entre 4,5 e 3,5 bilhões de anos - a partir da origem do Planeta. Nela foram criadas as condições para o surgimento da vida.
A bola de fogo inicial formada de gás interestelar em altíssimas temperaturas (plasma) era suficientemente grande para conservar uma atmosfera e continha os elementos químicos básicos, a partir dos quais os blocos de construção da vida podiam ser formados. Seu resfriamento levou cerca de meio bilhão de anos, durante os quais o carbono, que constitui a espinha dorsal da vida, foi se combinando com o hidrogênio, com o oxigênio, com o nitrogênio, com o enxofre e com o fósforo para formar uma ampla variedade de compostos químicos.
Os seis elementos citados integram os principais ingredientes químicos de todos os seres vivos. O ambiente da Terra primitiva favoreceu a formação de moléculas complexas. Algumas dessas moléculas tornaram-se catalisadores capazes de desencadear uma ampla variedade de reações químicas.
Gradualmente várias reações catalíticas se entrelaçaram e se engrenaram para formar redes catalíticas complexas com seus circuitos fechados e retro-alimentadores, e se transformaram em hiper-ciclos (conforme os experimentos de Manfred Eigen) com forte tendência à auto-organização e a auto-reprodução.
Os ciclos catalíticos evoluíram para estruturas dissipativas - que passando por sucessivas instabilidades e pontos de bifurcação - geraram sistemas químicos de crescente riqueza e diversidade. Eventualmente essas estruturas dissipativas chegaram a elaborar membranas, utilizando ácidos graxos sem proteínas, conforme experiências já produzidas em laboratórios. Especula-se que membranas dos mais diferentes tipos, bem como longas cadeias de elementos químicos, tenham sido formadas, tenham evoluído e tenham se desintegrado até o surgimento da primeira célula com a dupla hélice, que se tornou o primeiro ancestral de todos os seres vivos.
Neste contexto formou-se a terceira atmosfera constituída na sua maior parte de nitrogênio e oxigênio tal qual a existente até os dias de hoje. Com essa terceira atmosfera completavam-se as condições para o surgimento e a sustentabilidade da vida no Planeta Terra.
As demais condições já haviam sido asseguradas pela posição do Planeta no contexto do Cosmos: sua apropriada distância do sol, capacitando-a a receber a adequada irradiação solar; a velocidade de seu movimento de rotação, permitindo a alternância equilibrada entre noites e dias; sua massa e correspondente força gravitacional capaz de reter uma ampla variedade de moléculas, que, em outras circunstâncias, se perderiam no espaço; seu campo magnético em condições de refletir de volta para o espaço os raios solares de maior potencia energética, capazes de destruir a vida se absorvidos diretamente pela geosfera. A parte do Planeta em condições de dar suporte direto aos seres vivos é denominada de biosfera. Esta inclui ambientes aéreos e ambientes aquáticos. Nos ambientes aéreos as condições variam de acordo diversos tipos de região: deserto, zona temperada, pólos, montanhas, grutas, florestas e grandes cidades. Nos ambientes aquáticos as condições dependem das características do recurso hídrico: rios, represas, lagos, beira-mar, alto mar, águas abissais.
Embora existam muitas teorias sobre a origem da vida na Terra, é comumente aceito que o despontar da vida no Planeta e conseqüentemente o surgimento da biosfera tenha acontecido há cerca de 3, 5 bilhões de anos, encerrando definitivamente a idade pré-biótica na evolução do Planeta Terra e dando início à idade do microcosmo.
3.5 O Desenvolvimento da Vida no Planeta Terra na Idade do Microcosmo.
Os seres vivos ao longo de sua evolução foram progressivamente assumindo as seguintes características:
Estabilidade do organismo vivo com relação às suas funções e à composição química de seus fluídos e tecidos;
Organização em uma ou mais células;
Assimilação/desassimilação das substâncias necessárias à vida (metabolismo);
Crescimento e capacidade de adaptação,
Resposta a estímulos;
Reprodução.
Com o surgimento das primeiras células vivas na crosta terrestre, o Planeta passava da idade pré-biótica para a idade do microcosmo. Com efeito, os primeiros organismos vivos provavelmente foram bactérias. Esses primeiros seres vivos tiveram de enfrentar um ambiente consideravelmente hostil na crosta terrestre: uma causticante irradiação solar; impactos de meteoros; numerosas erupções vulcânicas; secas e inundações. Por outro lado, para encarar esses desafios as bactérias eram dotadas da capacidade de se reproduzir fielmente e com extraordinária velocidade. Dadas essas duas características as bactérias se expandiram gradualmente, em primeiro lugar na água, e em seguida em superfícies sedimentares e no solo.
Para assegurar, porém, essa expansão esses microorganismos tiveram de criar novas tecnologias e tipos de metabolismo a fim assegurar seu acesso ao alimento e a fontes de energia.
Uma de suas primeiras invenções foi a fermentação, que lhes permitiu romper os vínculos das moléculas de açúcar e convertê-las em moléculas ATP (abreviação em língua inglesa de Adenosine TriPhosphate). Essas moléculas são os veículos transportadores da energia que serve de combustível a todos os processos celulares.
Com base nesse metabolismo de fermentação, algumas bactérias inventaram a tecnologia de absorver o nitrogênio diretamente do ar. Com efeito, essa tecnologia requer a utilização de quantidades apreciáveis de energia. Ainda hoje essa tarefa é executada por esse tipo especial de bactérias. Como o nitrogênio é um ingrediente das proteínas em todas as células, todos os seres vivos dependem desse tipo de bactéria para suprir suas necessidades deste elemento químico crucial.
A terceira invenção foi a fotossíntese, que passou a ser a principal fonte de energia para os seres vivos. Os primeiros processos de fotossíntese inventados pelas bactérias são diferentes dos processos hoje utilizados pelas plantas. Diferentemente desses últimos a fotossíntese executada pelas bactérias não liberava oxigênio na atmosfera. Com efeito, para obter o hidrogênio elas não utilizavam a água, mas o sulfeto de hidrogênio lançado na atmosfera pelas erupções vulcânicas. Combinando o hidrogênio com dióxido de carbono existente no ar, elas elaboravam os compostos orgânicos.
As bactérias criaram também circuitos de retroalimentação que contribuíram decisivamente para preservar e aperfeiçoar as condições favoráveis à vida no Planeta Terra. Sabe-se hoje que vários corpos celestes perderam com o tempo todo o seu estoque de hidrogênio, que escapou de suas forças de gravidade, devido à leveza deste elemento químico. O Planeta Terra correu também esse risco.
Com efeito, vários elementos químicos, como o ferro, reagem com água e ao oxidar-se liberam hidrogênio. O gás hidrogênio (H²) ao elevar-se para as altas camadas da atmosfera rompe-se em átomos de hidrogênio, que pela sua leveza podem facilmente escapar para o espaço exterior e assim ao longo do tempo provocar o esvaziamento de todas as reservas de água do Planeta.
Para contrabalançar essa eventual perda do hidrogênio, as bactérias responsáveis pela fotossíntese aperfeiçoaram o seu processo de fotossíntese até conseguir uma tecnologia que liberasse oxigênio na atmosfera, como acontece hoje.
O oxigênio liberado pela fotossíntese passou a combinar-se com o hidrogênio para formar água, evitando a evasão do hidrogênio e assegurando a umidade relativa do ar.
Outro desafio foi também respondido pela ação das bactérias. O processo de fotossíntese retira grande quantidade de dióxido de carbono (CO²) da atmosfera. Ora este elemento químico é um dos grandes responsáveis pelo efeito estufa que contribui para o aquecimento do Planeta. Na época em que a irradiação solar era 25% inferior à atual, esta retirada do dióxido de carbono da atmosfera contribuía para uma redução significativa da temperatura do Planeta. Com a continuidade deste processo a Terra poderia congelar em toda a sua crosta e eliminar toda a vida dos microorganismos que nela proliferavam.
O processo de fermentação acima referido ao transformar os açúcares em moléculas ATP jogava na atmosfera dois dejetos: o metano e o dióxido de carbono. Como esses dois elementos químicos são os maiores responsáveis pelo efeito estufa, sua presença em maior quantidade na atmosfera passou a compensar a absorção do carbono pela fotossíntese. Assim fotossíntese e fermentação asseguravam conjuntamente o equilíbrio do dióxido de carbono e seu papel no efeito estufa, que conservava a temperatura constante no Planeta Terra e evitava o congelamento de sua crosta e a conseqüente extinção dos microorganismos nela existentes.
Ao mesmo tempo em que necessitavam da irradiação solar para efetuar a fotossíntese, os microorganismos tinham também que se defender contra as intensas radiações ultravioletas, que lhes eram prejudiciais. Para reduzir os danos decorrentes dessas radiações foram adotados vários sistemas de proteção pela criação de sensores, de filtros e de enzimas capazes de recuperar os danos no DNA, provocados por essas radiações. Quase todos os organismos vivos possuem ainda hoje a capacidade de produzir essas enzimas reparadoras.
Para levar a cabo essa tarefa de recuperação do DNA, as bactérias muitas vezes tomavam de empréstimo fragmentos do DNA de suas vizinhas, dando início a um intercâmbio de genes. Como as bactérias se reproduzem assexuadamente, este intercâmbio de genes tornou-se um instrumento de grande relevância na evolução desses microorganismos.
As bactérias conservam um reduzido número de genes em caráter permanente (normalmente menos de 1% do total), por isso elas necessitam atuar em comunidades. Uma associação de diferentes comunidades pode atuar com a coerência de um único organismo e desempenhar tarefas que nenhuma delas pode executar como indivíduo isolado.
Um bilhão de anos após o surgimento dos primeiros microorganismos as bactérias haviam ocupado toda a crosta terrestre. Através da mútua cooperação e do intercâmbio de genes elas passaram a regular as condições de vida no Planeta terra, por volta de 2,5 bilhões de anos depois do surgimento do Sol e do Planeta Terra.
No próximo bilhão de anos, isto é, há 1,5 bilhões de anos esses microorganismos tinham ajudado a criar a terceira (atual) atmosfera através de sua contribuição no equacionamento do desafio provocado pelo excesso de oxigênio na atmosfera terrestre, que começava a ameaçar a sobrevivência dos seres vivos no Planeta.
Com efeito, a rede de microorganismo criou um tipo especial de bactéria “verde azul”, um ancestral da atual alga “verde azul”. Utilizando a radiação solar de alta energia (ondas curtas) esta bactéria foi capaz de romper os vínculos da molécula da água nos seus componentes de hidrogênio e oxigênio. Aproveitou o hidrogênio para elaborar açúcares e outros carboidratos e liberou o oxigênio na atmosfera. Esta bactéria, que ainda existe hoje e prolifera em lagoas e piscinas, jogou assim na atmosfera quantidades elevadas de oxigênio, que na sua forma livre é tóxico, pois reage com matérias orgânicas e produz os “radicais livres”. Estes últimos são átomos que mantêm sua identidade através de todas as mudanças do resto da molécula e são dotados de propriedades tremendamente destrutivas para os carboidratos e outros componentes bioquímicos essenciais. Além do mais, o oxigênio reage com outros gases atmosféricos e com metais, desencadeando reações de combustão e corrosão. Embora durante algum tempo o Planeta tenha sido capaz de absorver este excesso de oxigênio, com o passar de milhões de anos este gás tóxico começou a se acumular na atmosfera, provocando resultados indesejáveis tais como a extinção de muitas espécies de seres vivos. Para enfrentar esse desafio a bactéria “verde azul” inventou o processo metabólico da respiração, uma maneira eficiente de canalizar e aproveitar a reatividade do oxigênio.
Através do processo metabólico da respiração esta bactéria teve à sua disposição dois mecanismos complementares, que passaram a regular as condições de vida no Planeta Terra: gerar oxigênio no processo da fotossíntese e no rompimento do vínculo da molécula H²O e absorver este mesmo oxigênio no processo de respiração. Em outras palavras, esta bactéria continuou a efetuar a fotossíntese e a aproveitar a irradiação solar para romper a molécula da água, liberando os átomos de hidrogênio e oxigênio, mas ao mesmo tempo criou o processo da respiração capaz de absorver o oxigênio liberado. Pela respiração esses microrganismos desenvolveram circuitos de retroalimentação capazes de controlar a quantidade de oxigênio livre na atmosfera. Esta proporção de oxigênio livre finalmente estabilizou-se em torno de 21%. Se esta percentagem caísse abaixo de 15% os organismos vivos não seriam capazes de respirar e morreriam asfixiados e a atmosfera perderia sua capacidade de se inflamar. Se a percentagem se elevasse acima de 25% a atmosfera pegaria fogo espontaneamente. Ademais foi sendo criada a camada de ozônio (molécula com três átomos de oxigênio), assegurando aos seres vivos do Planeta uma proteção mais eficaz contra a radiação ultravioleta.
Apesar da tendência de associar as bactérias com doenças, a rede de bactérias foi essencial para a evolução da vida até os nossos dias, pois ainda hoje estão presentes em toda a parte dando suporte indispensável à vida das plantas e animais, inclusive dos seres humanos. Com este sucesso o Planeta estava pronto para desenvolver outras formas de seres vivos.
3.6 O Desenvolvimento da Vida no Planeta Terra na Idade do Macrocosmo.
As bactérias que dominaram toda a Idade do Microcosmo (no período de 3,5 a 1,2 bilhões de anos) são células sem núcleo, denominadas de protocaryotes. A passagem da idade do microcosmo para a idade do macrocosmo foi preparada pelo surgimento das células dotadas de núcleo e denominadas de eucaryotes.
Este aperfeiçoamento começou a ocorrer há cerca de 2,2 bilhões de anos através de um processo de simbiose, que deu origem às células eucaryotes. A quantidade de DNA em uma célula dotada de núcleo é várias centenas de vezes mais elevada do que o simples fragmento de DNA encontrado em bactérias.
Através de uma sucessão de simbioses a criatividade adquirida pelas bactérias ao longo de dois bilhões de anos gerou uma crescente especialização das células. Esta especialização assegurou a transição do microcosmo para o macrocosmo caracterizado pelo desenvolvimento de seres vivos multicelulares, máxime plantas e animais.
Com efeito, as células dotadas de núcleo carregam em seu interior um conjunto de “organella”, que são pequenas partes da célula, capazes de desempenharem uma série de funções altamente especializadas.
Essas partes provavelmente originam-se de bactérias que invadiram células maiores. Em muitos casos essas células morreram acarretando também a morte da bactéria invasora. Em outros casos as bactérias invasoras passaram a cooperar com sua hospedeira e assim sobreviveram e evoluíram. A célula hospedeira desenvolveu membranas para proteger seu material genético. Ao longo de milhões de anos essas relações de cooperação evoluíram e tornaram-se cada vez mais coordenadas e entrelaçadas: essas “organella” originárias de bactérias invasoras ajustaram-se à vida dentro da grande célula e esta foi ficando cada vez mais dependente de sua hóspede.
Com o passar do tempo esta interdependência cresceu a tal ponto que hospedeira e hóspede passaram a funcionar como um único organismo integrado. As grandes células passaram a se beneficiar das inúmeras biotecnologias que as bactérias haviam criado ao longo de dois bilhões de anos quanto ao uso da irradiação solar e do oxigênio e mesmo quanto à locomoção. Nesta tendência de especialização das células uma das mais importantes foi a reprodução sexuada, ocorrida há cerca de um bilhão de anos. Inicialmente ela consistia de vários componentes que evoluíram independentemente e só com o passar do tempo se interconectaram e se unificaram.
O primeiro componente é um tipo de divisão de células chamado “meiosis” em que o número de cromossomos no núcleo é reduzido exatamente à metade, criando uma especialização de células - ovo e células - esperma. Esses dois tipos de células se fundem no momento da fertilização, restaurando o número normal de cromossomos, tendo como resultado um ovo fertilizado.
Com a divisão repetida desta célula chega-se ao desenvolvimento de organismos multicelulares. Esta fusão de duas células é comum no microcosmo das bactérias através do intercâmbio de genes.
No caso das plantas e dos animais esta reprodução e fusão de genes ficaram vinculadas e evoluíram para um elaborado processo de fertilização. Inicialmente esperma e ovo eram quase idênticos. Mas com o passar do tempo eles evoluíram para células de esperma, capazes de se movimentarem com rapidez, e células – ovo, que eram estacionárias e de tamanho maior.
A formação de embriões no processo de gestação de animais só aconteceu em épocas posteriores. No reino das plantas a fertilização levou a padrões complexos de co-evolução, mobilizando a cooperação de flores, insetos e pássaros. Além de plantas e animais surgiram muitos outros organismos multicelulares até mesmo entre as bactérias. Os biólogos classificam hoje os seres vivos em cinco grandes reinos: bactérias (microorganismos dotados de células sem núcleo); protistas (microorganismos dotados de células com núcleo); plantas; fungos e animais.
Esses cinco reinos são a classificação mais ampla, pois abrangem todos os seres vivos. Em cada um desses cinco reinos existem outras subcategorias, terminando com gênero e espécie.
A idade do macrocosmo teve início há cerca de 1,2 bilhões de anos atrás e estende-se até os nossos dias. Para entendê-la mais cabalmente, é preciso considerar três eixos marcantes de seu desenvolvimento:
Sua evolução e os desafios por ela enfrentados;
A co-evolução e as forças propulsoras da criatividade dos seres vivos;
A constituição das comunidades biológicas e dos ecossistemas.
3.6.1 Sua evolução e desafios por ela enfrentados
O desafio inicial consistiu no encadeamento dos processos evolutivos que conduziram ao surgimento de organismos com capacidade de locomoção. Os organismos multicelulares precisavam desta capacidade para deixar a água e ocupar a terra firme.
Com efeito, a locomoção foi inventada pelas bactérias, ou mais precisamente por uma bactéria denominada de espiroqueta (conhecida também como “cabelo encaracolado” ou “sacarrolha”) que se distingue por um corpo onduladamente flexível com o protoplasma enrolado em um eixo filamentoso elástico capaz de movimentar-se com rapidez. Esta bactéria ao se associar a grandes células conferiu a estas a capacidade de movimentar-se para evitar perigos ou para buscar alimentos.
Os primeiros animais surgiram há cerca de 700 milhões de anos e por volta dos 620 milhões de anos começaram a ser dotados de cérebro, o que contribuiu significativamente para aperfeiçoar sua mútua coordenação e controle. As plantas começaram a aparecer por volta de 500 milhões de anos. Animais e plantas surgiram primeiramente na água. Ambos desenvolveram organismos multicelulares de grande porte. Os ancestrais das plantas foram tapetes de algas existentes em águas de pouca profundidade iluminadas pelo sol. Esses tapetes de algas foram capazes de se reproduzir e se transformaram em plantas. Essas primeiras plantas eram destituídas de caule e de folhas, à semelhança dos atuais liquens.
No período entre 400 e 450 milhões de anos plantas e animais começaram a buscar a terra firme. O maior desafio neste empreendimento era a penúria de água. A resposta criativa das plantas foi envolver seus embriões em sementes resistentes à seca, de modo a poder esperar o aparecimento de um ambiente apropriadamente úmido, para efetivar seu processo de desenvolvimento. Há 350 milhões de anos viçosas florestas com vegetação capaz de produzir sementes cobriam extensas áreas da Terra. Por volta dos 200 milhões de anos, geleiras cobriram vários continentes e essa vegetação sucumbiu ao frio e foi substituída por coníferas sempre-verdes, com capacidade de resistirem ao frio e de se expandirem pelos picos das montanhas.
Por volta dos 125 milhões de anos começaram a aparecer plantas que produziam flores e também sementes inseridas nos seus frutos. Estas plantas co-evoluíram com animais que se alimentavam com seus frutos e disseminavam suas sementes. As plantas não eram capazes de desenvolver essas atividades por falta de locomoção.
Os primeiros animais surgiram e evoluíram também na água, a partir de grandes volumes de células, que assumiam forma globular e/ou similar à de um verme. Privados de estruturas mais consistentes e de esqueletos internos muitos se desintegraram até a morte ou foram vítimas da dissecação pela ausência de água. Ademais, o volume de oxigênio era bem superior ao existente nas águas do oceano e por isso necessitavam readaptar inteiramente seu processo respiratório, e ao mesmo tempo revestir-se de pele mais espessa para proteger-se da irradiação solar.
Outro desafio enfrentado pelos animais em terra firme foi o controle e a regulação do cálcio. Este mineral desempenha um papel vital no metabolismo de todas as células dotadas de núcleo e também é um elemento crucial para o funcionamento dos músculos. Esses processos metabólicos, porém, exigem que a quantidade de cálcio no organismo seja conservada em nível muito preciso, que é inferior aos níveis de cálcio encontrados nos oceanos.
Em épocas mais remotas os animais marinhos de pequeno porte eliminavam de seu organismo o excesso de cálcio, construindo com ele arrecifes de corais. Os animais de maior porte começaram a estocar o excesso de cálcio ao redor e dentro de seu próprio organismo e esses depósitos se transformaram em conchas e esqueleto. Assim o cálcio, ao invés de constituir um elemento poluente tornou-se um valioso material de construção de novas estruturas, conferindo a esses organismos uma vantagem seletiva excepcional no seu processo de evolução. Conchas e outras partes rígidas ajudaram-nos a se defender dos predadores. Os esqueletos apareceram primeiramente nos peixes, mas depois foram adotados por todos os animais de grande porte como estruturas essenciais.
Os primeiros vertebrados com espinha dorsal e uma caixa cerebral protegendo o sistema nervoso surgiram há cerca de 500 milhões de anos. Entre eles havia uma linhagem de peixes com pulmões, barbatanas curtas, queixos, e cabeça semelhante à de uma rã. Ao avançar pelas praias esse tipo de peixe evoluiu como os primeiros anfíbios, há 400 milhões de anos. Os anfíbios, tais como rãs, sapos, salamandras e tritãos, constituem a conexão evolutiva entre animais da água e animais da terra firme. Eles são os primeiros vertebrados terrestres, mas ainda hoje começam seu ciclo de vida na água como girinos.
Conjuntamente com anfíbios, chegaram também à terra firme os insetos, que neste novo ambiente diversificaram-se em um grande número de espécies. Devido ao seu pequeno porte e à sua alta taxa de reprodução os insetos tiveram o ensejo de adaptar-se a quase todos os ambientes e de desenvolver uma excepcional diversidade de estruturas corporais e estilos de vida. Existem hoje cerca de 750.000 espécies de insetos.
Há trezentos milhões de anos os fungos chegaram também à terra firme. Os fungos apresentam semelhanças com as plantas, mas as diferenças que eles ostentam são de tal magnitude que eles foram classificados como um reino diferente das plantas. Com efeito, eles não possuem clorofila verde para elaborar a fotossíntese; eles não comem nem digerem, mas absorvem seus nutrientes diretamente como elementos químicos. Diferentemente das plantas os fungos não dispõem de sistemas vasculares para desenvolver raízes, caules e folhas. Seus tipos de células são muito peculiares, pois possuem vários núcleos, que são separados por finas paredes que permitem a passagem dos fluxos de fluidos da célula. Os fungos se expandiram em estreita co-evolução com as plantas. Todas as plantas que crescem no solo dependem de um minúsculo fungo para a absorção de nitrogênio. Nas florestas as raízes de todas as árvores estão conectadas por uma extensa rede de fungos. Sem os fungos as florestas tropicais primitivas poderiam não ter existido.
Há cerca de 250 milhões de anos os anfíbios evoluíram como répteis, tendo desenvolvido alguns apreciáveis aperfeiçoamentos: mandíbulas poderosas, pele resistente à seca, e uma nova espécie de ovo. Os répteis encapsularam o ambiente marinho em ovos de grande porte. Nesses ovos a sua prole podia preparar-se convenientemente para passar o resto de sua vida em terra firme. Com essas inovações os répteis tomaram conta dos continentes e evoluíram em numerosas espécies. Deles descende a maioria dos lagartos hoje existentes.
Algumas linhagens de répteis trinta milhões de anos depois de sua aparição evoluíram em dinossauros (etimologicamente “lagartos terríveis”) numa variedade significativa de tamanhos e formas. Alguns eram herbívoros e outros carnívoros. Como os demais répteis punham ovos. Muitos deles construíam ninhos e alguns desenvolveram asas e evoluíram na forma de pássaros.
Há cerca de 70 milhões de anos os dinossauros e muitas outras espécies desapareceram inopinadamente. A hipótese considerada mais plausível para essa catástrofe consiste na queda de um meteoro de gigantescas proporções, provocando drásticas mudanças climáticas no Planeta Terra. Os dinossauros e outras espécies não conseguiram sobreviver a essas mudanças.
A extinção dos dinossauros abriu caminho para o surgimento dos mamíferos. Os primeiros mamíferos eram seres vivos de pequeno porte com hábitos noturnos. Eles desenvolveram a habilidade de manter seus corpos quentes em níveis constantes independentemente da temperatura ambiente.
Entre os mamíferos merecem especial destaque os primatas, que surgiram há cerca de 65 milhões de anos As fêmeas desses animais de sangue quente não mais envolviam seus embriões em ovos, mas passaram a alimentá-los no interior de seu próprio corpo. Depois do nascimento sua prole não tem condições de sobreviver por si mesma e necessita ser amamentada e cuidada por sua progenitora.
A ordem dos primatas bifurcou-se genealogicamente em duas subordens. A primeira delas foi a subordem dos pró-símios (denominados também de primatas inferiores) com seis diferentes famílias. Eles surgiram há aproximadamente 65 milhões de anos nos trópicos, alimentando-se de insetos e vivendo em galhos de árvores. Diversamente de outros animais os pró-símios não eram anatomicamente especializados e por isso eram ameaçados por inimigos.
Para suprir esta falta de especialização eles desenvolveram habilidade e inteligência, atitudes de cooperação e comportamento social para se defender contra seus eventuais inimigos, bem como criaram o hábito freqüente de emitir sons barulhentos para afugentarem seus predadores. Este hábito levou-os a aperfeiçoar sua capacidade de comunicação.
A segunda subordem foi a dos antropóides (denominados também de primatas superiores) abrangendo seis famílias que emergiram em torno dos 35 milhões de anos. Entre eles se destacam três grupos: os macacos, os “pongidae” (orangotangos, gorilas e chimpanzé, também conhecidos como “grandes macacos”) e os hominídas.
Os dois primeiros grupos são habitantes da floresta e caminham apoiados nas suas patas dianteiras. Alguns são capazes de caminhar com as duas pernas em distâncias curtas. Os “pongidae” são dotados de cérebros mais desenvolvidos do que os macacos e são capazes de confeccionar instrumentos e utilizá-los dentro de certa medida.
Os antropóides capazes de caminhar em posição ereta pertenciam ao gênero Australopithecus, que significa “símio do sul”, porque as primeiras descobertas de fósseis pertencentes a esse gênero foram feitas na África do Sul. A espécie mais antiga deste gênero recebeu o epíteto de Afarensis por ter sido encontrada na região chamada Afar, localizada na Etiópia.
Há cerca de 3 milhões de anos as primeiras espécies deste gênero evoluíram em várias espécies mais robustas. Duas dessas espécies eram hominídas e chegaram a coexistir com os ‘símios do sul” na África por várias centenas de milhares de anos, até chegarem à extinção.
Uma diferença fundamental entre os hominídas e os demais primatas consiste no período muito mais longo de que os infantes hominídas necessitam para passar à segunda infância, bem como para atingir a puberdade e a maturidade adulta. Essas exigências dos recém-nascidos levaram à constituição de famílias mais coesas bem como de comunidades mais estruturadas: bases da civilização humana.
Dotados de liberdade das mãos, esses hominídas aprenderam a confeccionar instrumentos, manejar armas, arremessar pedras. O desenvolvimento dessas e de outras habilidades estimulou o contínuo crescimentos do cérebro que caracterizou sua evolução e pode ter contribuído para o desenvolvimento da linguagem. Uma dessas espécies de hominídas surgiu na África do Leste há cerca de 2 milhões de anos. Eles constituíam uma espécie pequena e esguia, dotada de cérebro mais volumoso em condições de confeccionar instrumentos e desenvolver habilidades superiores a de qualquer outro antropóide. Esta espécie foi cognominada como homo habilis.
Por volta dos 1,6 milhões de anos esta espécie adquiriu uma compleição mais robusta e um cérebro mais desenvolvido e assim tornou-se muito mais versátil em adaptar suas tecnologias e estilos de vida às condições do meio ambiente.
Com essas novas qualificações os seus membros foram caracterizados como homo erectus e sua evolução se estabilizou por um milhão de anos. Tendo adquirido a tecnologia para controlar o fogo o homo erectus pôde deixar o conforto do trópico africano e emigrar para a Ásia, Indonésia e Europa, enfrentando os períodos glaciais intermitentes dessa época.
No período entre 400.000 e duzentos e 250.000 anos o homo erectus começou a evoluir para o homo sapiens. Esta evolução completou-se há cerca de 100.000 atrás, no caso da África e da Ásia, e há 35.000 anos no caso da Europa.
Neste último continente, porém, houve um desdobramento singular: o homo erectus evoluiu para o homo sapiens primeiramente através de outra linhagem que surgiu há cerca de 125 milhões de anos e ficou conhecida como homem de Neanderthal, porque seu primeiro espécime foi encontrado no vale do Neander, Alemanha. Possuía feições anatômicas peculiares: atarracado e robusto, de ossos maciços, fronte com baixa inclinação, mandíbulas volumosas, dentes da frente longos e projetados para fora. O surgimento dessa linhagem coincidiu com o início da mais recente era glacial e por isso seus integrantes tiveram de enfrentar condições climáticas de frio extremado, o que talvez explique as peculiaridades de suas feições. Estabeleceram-se na Europa e na Ásia. Por volta do ano 35.000 desapareceram: ou tornaram extintos ou se mesclaram com a espécie em evolução do homem moderno.
Com efeito, por volta do ano 35.000 o homem de Neanderthal havia sido substituído na Europa pelo homo sapiens numa subespécie denominada de homem de Cro-Magnon, sudoeste da França. Estes seres humanos datados como tendo vivido há 40.000 anos eram idênticos aos homens modernos, com linguagem plenamente desenvolvida e surpreendente desempenho tecnológico, artístico e cultural, como se pode depreender dos objetos por eles confeccionados com ossos e com pedras; das jóias por eles trabalhadas em conchas e em marfim; bem como das pinturas magníficas por eles registradas nas paredes das grutas de Cro-Magnon. Mais recentemente é preciso mencionar a descoberta em 1944 de uma grande gruta que foi cognominada como gruta de Chauvet, localizada na região de Ardèche (sul da França), dotada de um labirinto de câmaras subterrâneas ornadas com mais de 300 pinturas de alto nível artístico. O teste do carbono radioativo 14 revelou que essas pinturas datam de no mínimo 30.000 anos.
3.6.2 A co-evolução e as forças propulsoras da criatividade dos seres vivos.
A teoria evolucionista de Charles Robert Darwin publicada em 1859 em seu livro On the Origin of Species e completada doze anos depois com a publicação do texto The Descent of Man, significou um marco de referência importante no desenvolvimento das ciências da vida. No entanto, a seleção natural proposta por Darwin para explicar a evolução das espécies não fazia sentido à luz da concepção de hereditariedade estabelecida no seu tempo. Segundo Darwin as novas características desapareceriam em três ou quatro gerações.
A solução para esse quebra-cabeça veio com os experimentos do monge Gregor Johann Mendel (1822-1884), contemporâneo de Darwin. Nesses experimentos com ervilhas Mendel descobriu a existência de “unidades de hereditariedade” que eram transmitidas de geração em geração sem perder sua identidade.
Esta descoberta do monge austríaco, porém, só ganhou notoriedade no início do século XX quando o biólogo britânico William Bateson resolveu investigar a natureza química e física dessas “unidades de hereditariedade” estabelecidas por Mendel, que receberam a denominação de genes, e abriram um novo campo de investigação a que se deu o nome de genética.
A combinação da teoria evolucionista de Darwin com a teoria da hereditariedade consagrada por Mendel constituiu a teoria que passou a ser chamada de neo – Darwinismo que dominou o panorama científico até o 3º quartel do século XX. Hoje se sabe que o neo-Darwinismo contribui apenas com 1% para o aperfeiçoamento dos seres vivos.
Apesar dos progressos logrados pela biologia molecular em decifrar o código genético, acreditava-se que o genoma era constituído de uma coleção linear de genes independentes e que cada gene correspondia a um determinado traço biológico.
As pesquisas, porém, revelaram a existência de estruturas bem mais complexas, pois um único gene pode afetar uma série de traços biológicos e ao mesmo tempo um conjunto de diferentes genes podem combinadamente produzir um único traço. Por isso a biologia contemporânea considera o genoma como uma rede complexamente entrelaçada, que deve ser estudada numa perspectiva sistêmica. Esta descoberta abriu caminho para uma nova abordagem das ciências da vida.
Esta nova abordagem foi introduzida pela teoria dos sistemas dinâmicos, nos termos já explicitados anteriormente: a teoria das estruturas dissipativas de Ilya Prigogine; os hiper-ciclos de Manfred Eigen; as redes genéticas dos seres vivos, desenvolvidas por Stuart Kauffman; a autopoiese e o processo de cognição de Humberto Maturana e Francisco Varela. Esses desdobramentos científicos demonstraram sobejamente a fragilidade do neo – Darwinismo e abriram novos horizontes para a teoria da co-evolução através das forças propulsoras da criatividade dos seres vivos. Com a tendência crescente para uma visão sistêmica da evolução as pesquisas ressaltaram dois aspectos fundamentais do processo evolutivo dos seres vivos. Em primeiro lugar os registros fósseis demonstraram que a história evolutiva dos seres vivos no Planeta caracterizou-se por longos períodos de estabilidade sem variação genética ao longo de centenas de milhares de anos intercalados por períodos de súbitas e dramáticas transições.
Em segundo lugar as mudanças revelaram sobejamente a tendência inerente à vida de criar algo de novo, que podia ser ou não ser acompanhado de adaptação às mudanças das condições ambientais. Por isso as forças propulsoras da evolução não são provenientes de mutações fortuitas geradas por acontecimentos de sorte, mas essas forças brotam da tendência inerente à vida de criar desenvolvimentos novos, induzindo crescentes graus de complexidade e elaborando níveis mais elevados de ordem.
A abertura dessas rotas de criatividade dos seres vivos proveio não somente da biologia molecular, mas acima de tudo da microbiologia, isto é, do estudo da rede planetária de miríades de microorganismos, que constituíram a única forma de vida durante os dois primeiros bilhões de ano após o surgimento da vida no Planeta Terra. Neste longo período as bactérias transformaram continuamente a superfície e a atmosfera do Planeta, e inventaram as biotecnologias essenciais da vida, incluindo a fermentação, a fotossíntese, a fixação do nitrogênio, a respiração e os instrumentos giratórios necessários a sua rápida locomoção. Os estudos levados a cabo nas últimas três a quatro décadas demonstraram a existência de três rotas neste processo de criatividade da vida: a mutação fortuita de genes, o intercâmbio de genes e a simbiose.
A primeira rota é a mutação fortuita de genes. Ela constitui a viga mestra do Darwinismo e do neo-Darwinismo, mas de todas as três é a de menor relevância. Essa mutação é causada por um erro na auto-reprodução do DNA, quando as duas cadeias da dupla hélice do DNA se separam e cada uma delas serve de molde para a construção de uma nova cadeia. Esse caso de erro fortuito acontece uma vez em um conjunto de centenas de milhões de células de uma geração. No caso das bactérias esta situação assume proporções diferentes, pois diversos bilhões de bactérias individuais podem ser geradas de um único indivíduo em menos de 24 horas.
A segunda rota consiste no intercâmbio global de genes, denominado também de recombinação do DNA. Esta rota alcança alta eficiência na rede dos microorganismos, pois as bactérias são capazes de se adaptarem a mudanças no meio ambiente no período de pouco anos, enquanto os organismos mais complexos só conseguiriam essas adaptações em períodos de milhares de anos. Entre as bactérias existe um permanente intercâmbio de genes. Com efeito, as bactérias desenvolvem uma surpreendente variedade de estruturas genéticas ao lado da estrutura principal de seu DNA. Essas estruturas colaterais incluem a formação de vírus. Estes não desenvolvem em sua plenitude a característica auto-producente, essencial aos seres vivos. Constituem apenas fragmentos de DNA ou RNA em um revestimento de proteína. As bactérias, por sua vez, não são organismos unicelulares propriamente ditos; todas as suas linhagens podem partilhar traços hereditários e mudar até 15% de seu material genético a cada dia.
A terceira rota de criatividade é a simbiose. Enquanto a segunda rota tem maior relevância para os microorganismos, especialmente para as bactérias, a terceira rota abre caminho para a criatividade de todos os demais seres vivos. Conforme explicitado anteriormente a mais ampla classificação entre os seres vivos se dá entre aqueles, cujas células são dotadas de núcleo, e são denominados de eukaryotes; e aqueles cujas células não dispõem de núcleo e recebem a denominação de prokaryotes. Todos os organismos multicelulares são eukaryotes, bem como os organismos unicelulares que não são bactérias (microorganismos desprovidos de núcleo celular). Em suas pesquisas Lynn Margulis observou que todos os genes que se encontram deslocados dentro de uma célula são derivados de bactérias, e na realidade provêm de outros organismos vivos; ou, em outras palavras, são pequenas células residindo no interior de células maiores e assim configuram um caso de simbiose.
O fenômeno da simbiose, isto é, a tendência de diferentes organismos viverem em estreita associação e muitas vezes um dentro do outro, é amplamente verificado na natureza. As bactérias que vivem no intestino humano são um caso típico. Na própria célula dos seres vivos existe o caso do mitochondrium, uma espécie de casa de força cercada por uma membrana inserida no interior da célula. Uma hipótese plausível é que ela seja originária de bactérias que em épocas mais antigas invadiram outros microorganismos e fixaram residência dentro deles. Este é o caso de uma associação simbiótica, que se tornou permanente.
Em outras palavras, esta simbiose tornou-se um mecanismo evolutivo mais rápido e eficiente do que uma mutação. Enquanto a mutação neo-Darwinista é fruto apenas de uma competição, a simbiose é também e antes de tudo uma cooperação permanente. Assim a dependência mútua através da formação de redes entre as diferentes formas de vida assume um papel central do processo evolutivo que passa a ser uma co-evolução, como acontece nas comunidades biológicas e nos ecossistemas. O intercâmbio de genes e a simbiose contribuem com 99% para o aperfeiçoamento dos seres vivos.
3.6.3 Constituição das comunidades biológicas e dos ecossistemas.
Inicialmente a terra firme e os oceanos foram gerando uma profusão de organismos unicelulares. Em terra firme bilhões de microorganismos foram alimentando-se das rochas e transformando-as em solo fértil na medida em que trabalhavam esses minerais (carbono, fósforo, enxofre) conferindo-lhes formas capazes de germinarem plantas e serem por estas assimiladas. As plantas alimentavam-se desses minerais e sob a ação da água e da irradiação solar cresciam e se desenvolviam e começavam a elaborar a fotossíntese. Dessa forma a vida na Terra passou a depender das plantas, da água e da adequada irradiação solar. Utilizando a luz solar, as plantas passaram a produzir alimentos, e assim proporcionaram o surgimento de animais que delas se nutriam, completando a cadeia alimentar.
Microorganismos, plantas e animais formaram comunidades biológicas: florestas com diversos tipos de plantas, animais e microorganismos; comunidades de plâncton, que vivem em suspensão em águas doces, salobras e marinhas.
A comunidade biológica é constituída de todos os organismos que vivem em conjunto em um determinado ambiente e interagem entre si. Para entender o conceito de comunidade biológica é necessário levar em conta a teoria dos níveis integrativos ou teoria dos controles hierárquicos. Assim, quando oxigênio e hidrogênio são combinados de uma determinada maneira (H²O), o resultado é água, que assume atributos diferentes de seus dois componentes. De maneira análoga, quando árvores individuais evoluem em conjunto para formar uma floresta, não basta conhecer os atributos de cada árvore individualmente tomada. A floresta no seu conjunto é uma entidade bem mais complexa, dotada de novas funções e por isso assume os seus próprios atributos, distintos dos atributos de cada um de seus componentes individualmente tomados.
A comunidade biológica possui sua estrutura. A floresta é comumente uma mistura de vários tipos de plantas: árvores de maior porte, arbustos, vários tipos de ervas, musgos e liquens. A estratificação de uma comunidade biológica é fortemente influenciada pelo acesso de cada uma de suas camadas à irradiação solar, que é de 100% para as árvores de copas mais elevadas; 10 a 50% para árvores de menor porte; 5 a 10% para os arbustos; 1 a 5% para as ervas.
Em muitos casos, porém, essa estratificação não é apenas vertical, mas apresenta igualmente diferenciações horizontais, em função do solo, da altitude e da própria interação dos seres vivos, que constituem a floresta ou a comunidade biológica de um ambiente aquático. No seio de uma comunidade existem ordinariamente três maneiras principais de alimentação: fotossíntese da irradiação solar; ingestão e absorção.
Quando em uma comunidade duas espécies disputam o mesmo tipo de alimentação, a concorrência leva ao declínio e mesmo à eliminação de uma delas. A biodiversidade é mais ampla na medida em que cada uma das espécies cria o seu próprio nicho, sem competir com as demais espécies. A função principal de uma comunidade biológica é sua produtividade de matéria orgânica, que pode ser primária ou secundária. A fotossíntese é a fonte de energia biológica para a comunidade de seres vivos. A criação de compostos orgânicos, a partir de materiais inorgânicos, assegurada pelas plantas verdes de uma comunidade biológica é denominada de produtividade primária.
A quantidade bruta da produtividade primária representa a totalidade de energia disponível para uma determinada comunidade biológica, caso nenhum outro tipo de matéria orgânica seja introduzido de uma fonte externa a esta comunidade. A quantidade líquida da produtividade primária é a quantidade de energia que resta disponível para ser utilizada pelos demais seres vivos da comunidade, que não são capazes de confeccionar seu próprio alimento através da fotossíntese, tais como: animais, bactérias e fungos.
Com efeito, estes são forçados a obtê-lo por outros meios, em consonância com a cadeia alimentar. Assim os animais herbívoros alimentam-se das plantas. Estes por sua vez servem de alimento aos carnívoros. A lagarta alimenta-se da planta; o pássaro alimenta-se da lagarta e o gavião alimenta-se de outros pássaros.
Estes outros níveis de produtividade de matéria orgânica são denominados de produtividade secundária. A biomassa é a quantidade de matéria orgânica presente em uma comunidade em um determinado momento.
No caso de uma comunidade biológica terrestre, ela é constituída dos tecidos de plantas vivas ou de plantas mortas. Em uma comunidade biológica aquática, a produtividade é bem inferior e diminui na razão direta da profundidade.
A respiração é outra atividade dos seres vivos que consome energia. Tanto plantas como animais usam o oxigênio do ar atmosférico e expelem dióxido de carbono formado pelos compostos de carbono em seus respectivos sistemas. As plantas verdes, porém, durante a luz do dia utilizam o dióxido de carbono existente no ar para formar amido e ao mesmo tempo liberam o oxigênio na atmosfera.
Quando a comunidade biológica alcança uma produtividade primária bruta superior ao total de sua respiração e uma produtividade primária líquida maior do que a taxa de seu aproveitamento pelos seres vivos, que a compõem, bem como pela sua taxa de decomposição, sua matéria orgânica tende a se acumular. O carvão e o petróleo representam acumulação desta matéria orgânica em épocas geológicas anteriores.
Para a comunidade biológica o ideal é atingir o seu clímax, que é caracterizado não pela máxima produtividade, mas pelo máximo de biomassa ou da taxa de acumulação da biomassa, conservando ao mesmo tempo uma taxa zero ou muito baixa de produção líquida. O clímax é, pois, um estado a ser atingido por uma comunidade biológica estável: consiste em um estado de equilíbrio dinâmico, capaz de assegurar uma relativa constância, que deve caracterizar um sistema aberto.
Em termos mais concretos esta estabilidade alcançada no clímax exige que o fluxo de energia, de materiais e de indivíduos que percorrem todo sistema, seja tal que os insumos e produtos de todos esses elementos sejam iguais, de modo que o sistema permaneça idêntico em suas características.
Três condições são cruciais para este equilíbrio dinâmico: equilíbrio das populações; fluxo energético; movimentação dos materiais. Em outras palavras, no estado de clímax as populações de espécies individuais devem estar relativamente estabilizadas, embora sujeitas a certa flutuação. A adição de novos indivíduos, seja por nascimento, seja por imigração deve ser contrabalançada pela saída de indivíduos por morte ou por emigração. As novas quantidades de energia, geradas pela fotossíntese, devem ser contrabalançadas pela perda de energia através da respiração, de modo que os recursos energéticos em materiais orgânicos permaneçam relativamente constantes.
A aquisição de novos materiais através da fotossíntese ou através de nutrientes deve ser contrabalançada pela sua perda através da respiração, da decomposição, da excreção e da lixiviação. À semelhança dos indivíduos a comunidade biológica se sustenta utilizando a energia livre, disponível nos compostos orgânicos, pois seu objetivo é manter sua função e sua complexa estrutura.
Mas diversamente dos indivíduos que, para se desenvolverem e se reproduzirem, dispõem das instruções genéticas contidas no seu DNA, a comunidade biológica é desprovida deste instrumento. Para se desenvolver e se reproduzir depende das suas interações recíprocas e das suas interações com o seu meio ambiente. Seu clímax é determinado pelos recursos e pelas limitações prevalentes no suporte inorgânico com que interagem.
Esta característica conduz ao conceito de ecossistema. O termo “ecologia” foi introduzido pelo zoólogo alemão, Ernst Haeckel (1834-1919) para expressar a relação entre o reino animal e o meio ambiente, tanto orgânico como inorgânico, em que este se encontra inserido.
O termo vem do grego, em que oikos significa “habitação, residência, lugar em que se vive (correspondente à expressão , habitat, na língua latina).
Essas interações entre indivíduos, entre populações, bem como entre organismos e o meio ambiente orgânico e inorgânico em que esses organismos estão inseridos passaram posteriormente a ser denominadas de sistemas ecológicos, e finalmente ecossistemas. A expressão ecossistema foi cunhada pelo ecólogo britânico Arthur George Stanley em 1935, embora o conceito tenha começado a ser ventilado desde meados do século XIX. Os países de cultura eslava utilizam o termo biocenose, que é equivalente e sinônimo de ecossistema.
O conceito de ecossistema fundamenta-se em duas teorias complementares. Em primeiro lugar na teoria holística, segundo a qual o meio ambiente é formado por todos os seres vivos (incluindo o ser humano), interagindo entre si, e interagindo com os demais componentes físicos não orgânicos do Planeta em consonância com as leis físicas e biológicas, formando uma unidade.
A segunda teoria, já explicitada anteriormente, é a teoria dos níveis integrativos ou dos controles hierárquicos constituídos pelo ar, pela água, pelos minerais, pelo solo, pelas plantas, pelos animais, pelos microorganismos, em que todas essas partes funcionam e interagem como um todo. Pode-se assim dizer que, em termos abrangentes, o ecossistema é uma unidade em que todos os seres vivos (fatores orgânicos) interagem entre si e com o meio ambiente (fatores inorgânicos), ensejando um fluxo de energia dentro do sistema, e proporcionando-lhe uma estrutura trófica (alimentar), uma diversidade biótica, e um intercâmbio de materiais entre seres vivos e não vivos. Em consonância com esta definição, não há limites para a dimensão espacial de um ecossistema. Esta dimensão pode abranger o espaço físico de alguns poucos quilômetros ou pode se estender a toda a biosfera.
3.7 O Sistema Gaia e a Centralidade Peculiar ao Fenômeno da Vida.
A idéia da Terra como um organismo vivo surgiu em vários momentos da história, desde a mitologia grega que cultuava a deusa Terra (Gaia) e da mitologia de outros povos e culturas com suas correspondentes e análogas mitologias, passando pelo debate entre mecanicistas e vitalistas no século XIX, até atingir o movimento ecológico contemporâneo que assumiu o conceito de rede na concepção dos ecossistemas.
Em anos mais recentes a colaboração entre o especialista em química atmosférica James Lovelock e a microbiologista Lynn Margulis fundamentou cientificamente a hipótese do Planeta Terra com um sistema vivo e auto-organizativo.
Ao analisar comparativamente a atmosfera do Planeta Marte e do Planeta Terra, Lovelock concluiu que Marte era um Planeta com uma atmosfera em estado de equilíbrio com quantidades muito elevada de dióxido de carbono, pouco oxigênio e pouco metano, onde todas as reações químicas da atmosfera já tinham sido completadas. Com este diagnóstico Lovelock avaliou que em Marte não havia vida. Esta constatação foi confirmada mais tarde pelo Programa Viking que enviou uma espaçonave a este Planeta. Pelos seus conhecimentos de química atmosférica, de termodinâmica e de cibernética o cientista britânico se perguntava quais os mecanismos que auto-regulavam a atmosfera terrestre para que esta favorecesse condições de sobrevivência e de aperfeiçoamento dos organismos vivos e de sua interação com a matéria inorgânica do Planeta.
Como microbiologista a americana Lynn Margulis defendia que não apenas o oxigênio da atmosfera terrestre, mas vários outros gases tinham sua origem nos organismos vivos, a começar da rede das miríades de microorganismos que cobriam inteiramente todo o planeta, tanto em terra firme como nos ambientes aquáticos. Ela e o britânico James Lovelock resolveram trabalhar em conjunto para identificar gradualmente a complexa rede de circuitos de retroalimentação que assegura a auto-regulação do sistema planetário terrestre.
O resultado desse trabalho conjunto foi a confirmação da hipótese de que o Planeta Terra pode ser considerado como um sistema vivo e auto-organizativo. O processo de auto-organização é a chave desta hipótese. Com efeito, a astrofísica atesta que o calor da radiação solar aumentou 25% desde que a vida surgiu no Planeta há cerca de 3,5 bilhões de anos. Mesmo assim a temperatura na superfície do Planeta permaneceu constante em um nível capaz de proporcionar condições adequadas à sobrevivência e aperfeiçoamento dos seres vivos. Essa mesma constância pôde ser observada no que diz respeito a outras condições, tais como a composição da atmosfera e a salinidade dos oceanos. Ao investigar os circuitos de retroalimentação que garantem essa constância os dois cientistas chegaram à conclusão de que esses circuitos atuam de maneira cíclica e assim reconstituíram os ciclos do dióxido de carbono e dos demais elementos essenciais aos seres vivos. O resultado de todas essas investigações demonstrou que através de interações cíclicas o meio ambiente inorgânico não pode ser considerado apenas como uma plataforma em que a vida se desenvolve e perpetua, mas é parte integrante da própria vida. Em outras palavras: a vida na realidade constrói e modifica o meio ambiente ao qual se adapta e dá-lhe forma. Por sua vez, o meio ambiente retroalimenta a vida que está mudando, atuando e nele crescendo. Entre ambos existem interações constantes e cíclicas.
Em decorrência desta constatação os dois cientistas consideram falsa a concepção de que são as forças geológicas que estabelecem unilateralmente e com exclusividade as condições da vida na Terra, tornando assim os microorganismos, plantas e animais meros passageiros que por acaso encontraram no ambiente geológico terrestre as condições adequadas para a sua evolução. Para o cientista britânico e para a microbiologista americana são os próprios seres vivos que criam as condições para sua própria existência e aperfeiçoamento. Com efeito, são os circuitos de retroalimentação com seus correspondentes ciclos que regulam o clima da Terra e as demais condições favoráveis à vida neste Planeta. Ao interconectar gases atmosféricos, microorganismos, plantas e animais eles sustentam e aperfeiçoam a rede da vida. Em outras palavras, a interconexão entre a rede da vida e os elementos inorgânicos do Planeta (rochas, oceanos e atmosfera) forma um único conjunto auto-regulador de todo o sistema.
Esta é a essência mesma da teoria, que James Lovelock em cooperação com Lynn Margulis denominou de Gaia, libertando essa expressão de suas anteriores conotações mitológicas e mesmo filosóficas, embora esta teoria possa vir a ter profundas implicações filosóficas em um futuro próximo. Esta teoria demonstra a sustentabilidade das comunidades biológicas e sobretudo dos ecossistemas. Com efeito, são os ecossistemas que asseguram e concretizam essa interconexão unificadora entre as comunidades biológicas e o meio inorgânico a que estão acopladas.
3.8 Mobilização de Toda a Sociedade Civil Sobretudo a Não Organizada.
Desde a análise do cientista social francês Roger Bastide a intelectualidade acadêmica conferiu maior destaque à co-existência de dois Brasis: o Brasil afluente que desfruta do progresso alcançado pelo país após sua independência e o Brasil pobre e indigente constituído hoje por mais de 50 milhões de pessoas que não conseguem sobreviver com as migalhas que lhe chegam às mãos como sobras desprezíveis que caem da mesa conspícua e farta do Brasil desenvolvido. Mais recentemente pode-se aplicar a esses dois Brasis a expressão cunhada por Noam Chomsky com respeito aos dois mundos em que se divide hoje a humanidade: A minoria prospera e a multidão inquieta. Constatações evidenciadas ultimamente permitem, com efeito, enquadrar a população brasileira nessa caracterização do Professor do Massachusetts Institute of Technology - MIT:
A crise política que vem afetando o desempenho do Estado brasileiro, impossibilitando o país de dar o salto qualitativo de que necessita para galgar um novo patamar no seu processo de desenvolvimento sustentável;
As graves distorções - que vêm sendo infligidas ao regime democrático adotado pelo Brasil - em virtude da aliança entre os interesses do Poder econômico/financeiro e a ação maciça e massificante dos publicitários no intuito de manipular a vontade da cidadã e do cidadão brasileiro, com relação às questões políticas e mesmo na escolha que fazem ao depositar o voto nas urnas.
Uma análise mais acurada revela que menos de 10% da sociedade brasileira estão adequadamente organizados para fazer prevalecer sua vontade política, ao passo que os demais noventa por cento da população do país estão mais conscientes da situação, mas não chegam a exercer nem sequer a dimensão política completa de sua cidadania.
A organização, articulação e mobilização desses 90% de brasileiros (as), hoje ainda dispersos e desarticulados, revelam-se como uma estratégia de fundamental importância para superar os impasses em que se encontra hoje enredada a sociedade brasileira, proporcionando a essa maioria esmagadora da população do país a capacidade e as condições de influir decisivamente na formulação e implantação das políticas públicas. Esta organização, articulação e mobilização devem partir das bases municipais.
Um dos pontos de partida será conferir outro estatuto aos três novos instrumentos de participação popular, criados pela constituição de 1988. No caso da “iniciativa popular”, este instrumento deve ser investido dos seguintes poderes de decisão política: definir os temas que serão submetidos ao voto popular e propor projetos estruturantes que, uma vez atendidas as exigências legais para a sua validade, devem ser contemplados obrigatoriamente pelo orçamento governamental.
Para isso seu formato atual, deve ser completamente reformado. Em vez das coletas de imensas listas de papel “a iniciativa popular” em seu novo modelo poderá ser viabilizada pela utilização das urnas eletrônicas.
Nas eleições, que se realizam a cada dois anos, o eleitor além de votar em candidatos, é chamado também a tomar posição de apoio ou de recusa a uma “iniciativa popular” em decisão direta, sem passar pelo Congresso Nacional.
Desta maneira o Brasil, apesar de suas dimensões territoriais, pode dar passos significativos no exercício de uma democracia direta. A mobilização e a articulação da sociedade civil, conferindo-lhe poder para decidir diretamente poderão mudar significativamente a maneira de fazer política no Brasil.
Com esta mobilização organizada poder-se-á lograr mais eficazmente a implantação de uma civilização da vida e a serviço da vida, bem como as medidas capazes de reduzir substancialmente as desigualdades, que há séculos desfiguram o desenvolvimento brasileiro, transformando o país em uma democracia plena e integrada, exercida por cidadãs e cidadãos.
Esta participação organizada de toda a sociedade civil poderá no médio prazo capacitar o Brasil a dar o salto qualitativo, que o habilite a galgar um novo patamar, rumo ao seu desenvolvimento sustentável. Um dos elementos primordiais para este salto qualitativo é a adoção e implantação da “civilização da vida e a serviço da vida”, principalmente na Região Amazônica, onde esta opção é a única maneira de evitar destruição e o aniquilamento de sua exuberante biodiversidade.
3.9 Conclusão
A Juventude Agrária Católica do século XXI é chamada a empunhar a bandeira desta nova civilização e colaborar para a implantação desta “civilização da vida e a serviço da vida”. A maneira mais eficaz de atingir este objetivo é contribuir para a mobilização e articulação da sociedade civil, a fim de viabilizar politicamente a adoção e implantação desse empreendimento vital para o Brasil.
Convém notar que a civilização da vida não elimina o progresso científico e tecnológico da matéria inorgânica e da máquina, mas assume com relação a estes um posicionamento de total prioridade. Por isso coloca-os sempre a serviço da ciência e tecnologia da vida e a estas os subordina.
É preciso reconhecer que a opção pela civilização da vida é a maneira mais eficaz para responder aos desafios do aquecimento global: reduzindo a acumulação excessiva de dióxido de carbono e de metano da atmosfera (os maiores responsáveis pelo efeito estufa); eliminando os agrotóxicos da atividade agrícola e os hormônios da pecuária; abolindo a transgenia de primeira geração e promovendo a transgenia de segunda geração; imprimindo um novo rumo e novas prioridades às políticas de ciência e tecnologia.
De outro lado, como movimento de Igreja, a JAC não pode encarar o fenômeno da vida do ponto de vista estritamente biológico. É bem verdade que cada ser humano e a humanidade inteira estão solidariamente vinculados ao desenvolvimento de todos os seres vivos e em interação permanente com o substrato inorgânico do Planeta e do Universo.
Ao mesmo tempo é preciso levar em conta que o ser humano ocupa o ápice da cadeia evolutiva e é dotado de inteligência racional e livre arbítrio, que o habilita a se relacionar com seus semelhantes, dedicando-lhes um amor total de doação de si mesmo e de com eles constituir uma sociedade fraterna de bem-estar assegurado pela justiça, que conduz à paz. Mas também pode se deixar levar por um amor possessivo capaz de destruir e desrespeitar os demais nos seus direitos mais fundamentais e inalienáveis, estabelecendo nos seus relacionamentos estruturas de dominação opressora.
Como um movimento integrado por jovens cristãos, fiéis membros da Igreja Católica, os membros da JAC são chamados a alargar os seus horizontes para encarar o fenômeno da vida não apenas do ponto de vista puramente biológico e humano, mas também à luz do Desígnio divino de salvação, valorizando e cultivando a vida divina que lhes foi outorgada no batismo pela efusão do Espírito Santo. Este sacramento não apenas os integrou na comunidade de Igreja. Este sacramento os tornou igualmente filhos e filhas adotivos de Deus, pela mediação de Cristo Jesus. Por isso em união com Cristo são chamados a viver a comunhão de amor com as três Pessoas da Trindade e a comunhão de amor com os irmãos e irmãs na fé na esperança e na caridade, bem com a engajar-se no serviço à sociedade em que estão inseridos.