Semana (pouco) Santa
Frei Betto *
No
Brasil, a maioria é cristã. Cristãos avulsos, sem vínculos paroquiais
ou comunitários. Por isso, profanamos a Semana Santa. Em vez do
lava-pés na quinta-feira, lavamos a alma em dúzias de cerveja. Em vez
da memória do Senhor morto na sexta, o churrasco no quintal e a
sofreguidão de quem acredita que felicidade resulta da soma de prazeres.
Em vez de aleluias no sábado, o mergulho em piscinas e mares. Em vez
da Páscoa, a mais importante festa cristã, um domingo de lazer no qual
se espera apenas que o Sol ressuscite dentre as nuvens e nos conceda a
glória de seu brilho.
Estamos perdendo a memória das datas emblemáticas e dos ritos de
passagem. Nossas crianças crescem no ateísmo prático, como se Deus
fosse um camafeu guardado por suas avós numa caixa forrada de veludo.
Se não há quem as leve à igreja, faça-as participar do lava-pés e da
procissão da cruz, e cantar aleluias pela ressurreição de Jesus, como
esperar que cresçam com algum sentimento religioso?
Tornam-se, pois, neófitas da religião das novas catedrais: os
shopping-centers. Aprendem que a Semana Santa é apenas uma miniférias
que demarca com nitidez duas classes de seres humanos: os que podem
viajar e os que ficam. Se um dia forem relegadas à categoria dos que
ficam, sentir-se-ão humilhadas, reagindo segundo a única escala de
valores que conhecem: a do status a qualquer preço.
Os fatos históricos celebrados pela Igreja na Semana Santa fazem parte
dos arquétipos que regem a nossa cultura ocidental. Olvidar-se que, no
século 1, Jesus de Nazaré foi perseguido, preso, torturado e assassinado
na cruz por “passar a vida fazendo o bem”, como sublinham as
Escrituras, é perder a identidade cristã. Sem paradigmas e referências,
invertemos os valores. Trocamos a religião pelo consumo, abraçando
inclusive uma religiosidade prêt-à-porter, de quem busca nos astros e
nas cartas, nos búzios e no I Ching o que convém à própria segurança
psicológica.
Nenhuma preocupação com os pobres, nenhuma fome de justiça, nenhuma
entrega à oração. Fugimos de práticas comunitárias como o diabo da
cruz. Inventamos uma religião individual, na qual somos fiéis e bispos,
profetas e doutores. Por isso nos encanta a literatura esotérica que
nutre nossa fantasia com manuscritos arcaicos e anjos cabalísticos. Nada
disso exige que se cumpra o fundamental: amar ao próximo, sobretudo o
carente.
É Páscoa, mas não passo. Fico na minha. Entregue ao ócio dos feriados.
Se possível, vendo filmes na TV. E não me peçam que pare o carro caso
encontre um acidentado na estrada. Sujaria tapetes e bancos,
impressionaria as crianças, atrasaria a viagem. Exceto se a fatalidade
fizer com que o acidentado seja eu.
• Frei Betto é escritor, autor do romance sobre Jesus “Entre todos os homens” (Ática), entre outros